Cardoso
Filho
De frente para o espelho, barbeador na mão direita, o
rosto recoberto pela espuma alva. Mirou-se. No canto dos olhos, os primeiros
sulcos anunciando a meia-idade. Nos cabelos, pinceladas brancas. E a
constatação algo amarga: “É, estou envelhecendo! ”.
O barbeador começou a
correr pelo rosto, deixando rastros na espuma. Depois foi para debaixo do fio
d’água que escorria da torneira.
“E acabei não me casando! Curioso
com tenho pensado nisso. Não faltou oportunidade. Houve várias. Mas sempre o
receio, não sei bem por quê. Intuição, talvez. Queria liberdade, sem as amarras
do casamento; livre para as noites e madrugadas, para as espichadas conversas
em torno de uma cerveja. Para o violão e as cantorias. Ah, tempo das serenatas,
de mocinhas palpitando de emoção por detrás das janelas cerradas! Pois aqui
estou. Solitário, é certo, entrando na idade, com poucas chances de mudar de
rumo. Os velhos amigos, quase todos, casaram-se, arrumaram filhos, tomaram-se
de responsabilidades. Felizes? Quem sabe? E eu? Nem feliz, nem infeliz. Tanto
faz se chove ou faz sol. Dias iguais, mesmos programas e o calendário virando
as folhas. Levo como posso. Talvez devesse ter-me casado. Seria uma acomodação,
com refeições regulares, em horários certos, roupa lavada, rotina bem
estabelecida, filhos para ostentar meu nome por aí e ajudar a gastar dinheiro. Também
mais problemas para resolver. Mas que adianta não ter incômodos? Um pouco de
preocupação ajuda a viver, desafia. Mas não tenho essa luta. O que fazer? Já caminhei
demais para querer voltar.”
O pincel percorreu o rosto
em círculos rápidos e espalhou nova camada de espuma. Ele observou as manchas
arroxeadas sob os olhos. O olhar ainda firme, mas o brilho diminuira.
“Ou será impressão? Não,
não é. A gente tem de se acostumar. Natural que seja assim. Contingência de que
não se escapa. Mas é desagradável. Nossa presença passa a impor respeito,
tratam-nos de “senhor”. São indícios claros. Pior é que, trocando minha vida em
miúdos, sobra pouco. Acho que fui egoísta. A Maria Clara me disse isto. Pensei
demais em mim, não quis me dividir e acabei só. Dos bons tempos, poucos amigos
disponíveis para uma conversa mais demorada; outros, mais conhecidos que
amigos, de pouca intimidade, de cumprimentos ligeiros na rua, como vai indo?,
bem, e você?, vamos nos ver, fica-se por aí, cada qual em seu caminho.”
O barbeador reiniciou a
marcha. Deslizou de baixo para cima, sulcou a espuma, depois voltou ao fio de
água para lavar a lâmina.
“Nem os bares são mais os
mesmos. Também devo ter mudado bastante. Agora é a vez da rapaziada que não
sabe beber seu chope discretamente, sem fazer barulho. Zoeiras me incomodam.
Terei sido assim? Acho que não. Fazíamos algum ruído com nossas conversas e
risadas, mas reservadamente, longe de olhos e ouvidos curiosos. Depois íamos
para um banco de praça para deixar o álcool evaporar. Sem os perigos de agora.
Foi por causa da boemia que Maria Clara brigou comigo. E dois anos depois se
casou com um advogado... Casou-se bem, parece. Poderíamos ter-nos casado. Outra
vez essa ideia. Interessante pensar nisso. Será que a amei de verdade? O que é
amar? Sempre me pergunto e não concluo. Já se passaram tantos anos que nem me
lembro bem de como me sentia ao lado dela. E seu rosto? Deve ter-se modificado.
Casamento muda a gente. Engorda um pouco, às vezes demais, vêm os filhos, e os
cuidados que eles exigem deixam marcas. Soube que ela chorou quando terminou
nosso namoro. Desistiu de cansaço. Esperava que a procurasse com a promessa de
deixar a vida meio irresponsável, de poucas regras e compromissos. Mas a vida
estava tão boa!... Será que ela vive bem, feliz? Se a encontrasse agora, não
saberia o que dizer-lhe, ou indagar-lhe. Perguntaria pelo marido?, pelos filhos?,
por sua vida? Será que ela pensa em mim de vez em quando? Acharia que mudei
muito? É, basta ver no espelho. Cabelos grisalhos, olheiras, algumas rugas na
cara. Engordei, também. E meio sentimental.”
O pincel percorreu o rosto
pela última vez e deixou sobre a pele espuma rala, aguada. A lâmina retomou a
tarefa, pouco mais demorada no queixo difícil de escanhoar.
“Envelhecendo!... Na
mocidade, não pensava a respeito, no desgaste do corpo, na saúde mais frágil.
Ando tossindo um pouco, por sinal. Ainda não me sinto assim, debilitado, mas é
questão de tempo. Alguns anos mais e chegará o que os românticos chatamente
chamam de ‘inverno da vida’. O negócio é tentar afastar o que der a estação dos
chinelos e das mantas sobre as pernas. Aproveitar o meio do caminho. Nem velho
nem moço. Experiente. Mas o que vale a experiência? Só nos chega depois do
feito e do desfeito. Constatações tardias. Nem serve para ser transmitida aos jovens.
Cada qual faz a vida a seu modo. Foi assim comigo, sem perguntar, sem ouvir. Acabei
meio solitário, nostálgico, mas sem grandes reclamações. Sem tristeza, apenas
um pouco vazio. Que fazer? Ando meio confuso estes dias.”
Lavou o rosto, sentiu o
ligeiro choque da água fria. Retirou os restos de espuma e secou a pele com a
toalha macia.
“Devia romper com o
passado. Mudar de ambientes, tentar esquecer. Lembrar às vezes dói e a idade
acentua essa mania. Podia não se envelhecer jamais. Um dia, viria a morte,
simplesmente, sem dores, sem sofrimentos, sem definhamento penoso. Apagar como
chama de vela abatida por uma lufada. Sem marcas do tempo no corpo todo. Sempre
jovem, as mulheres sempre belas. Mas estou me enfiando em pensamentos bobos. A
vida é o que é. Acho que sinto é certa frustração, algo de amargo. Mas quem não
acaba sentindo a mesma coisa, algum dia? Quem não carrega sonhos arquivados,
dores na alma? Algum arrependimento, alguma culpa?”
A loção cobriu o rosto,
com leve ardência. Depois, a sensação da pele perfumada esfriando gostoso. Acabara-se
a barba.
Arrumou-se e saiu à rua.
Esperava-o uma manhã de sol, e a claridade empurrou-lhe as inquietações para o
fundo da mente. Ficassem para outro dia, outra hora. Haveria tempo para elas.
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