Ciro & Lurdes
Cardoso Filho
Descendentes de ucranianos, casados havia
pouco, gente humilde, criados na lida dura de lavração da terra, um dia,
cansados da vida difícil, de futuro pouco promissor, decidiram deixar o campo
em Prudentópolis e tentar a sorte na capital. Haveriam de encontrar trabalho
melhor na cidade grande, eram de enfrentar o pesado, qualquer coisa serviria
para começar. Rasparam as economias, juntaram mais umas ajudazinhas dos
familiares, recolheram o tico de móveis, os presentes simples recebidos no
casamento, umas loucinhas, uns talheres baratos, uns bibelôs, o modesto enxoval
de noiva, botaram tudo em cima de um pequeno caminhão de aluguel e partiram. Contavam,
para início da nova vida, que uns parentes em Curitiba dariam alguma mão,
pouca, era certo, porque também se tratava de gente pobre pelejando para
sobreviver. O resto seria com Deus.
De fato, um dos parentes indicou Lurdes
para trabalhar de doméstica na casa de dona Elisa, distinta senhora com quem se
adaptou fácil, porque Lurdes era trabalhadeira e boa de gênio. Ganhava pouco, mas
o pouco permitia ajudar em casa. Ciro, por seu turno, acostumado a lidar com
plantas e matos, arrumou umas ferramentas com uns cobres que a generosidade de
dona Elisa lhe adiantou e foi trabalhar de jardineiro. Assim começaram a vida
em Curitiba. Na rotina de todos os dias, Lurdes seguia bem cedo para o emprego
e lá, com licença da patroa, preparava a marmita para o marido. Pouco mais
tarde, Ciro aparecia, apanhava o almoço e partia para cuidar dos jardins. A
vidinha seguia nesse ritmo, difícil, de muito trabalho, mas com jeito de
melhorar, pois Ciro, caprichoso no que fazia, ia aumentando a clientela e logo
pôde comprar uma bicicleta usada para facilitar-lhe o transporte. E Lurdes
amava Ciro e Ciro amava Lurdes, e sonhavam juntos com tempos melhores, e o
querer e a esperança ajudavam muito no enfrentamento da aspereza daquele
começo. Mas, certa manhã, o céu toldou-se para eles.
Ciro chegou para apanhar a marmita. Perguntou
se já estava pronta. Lurdes desculpou-se, meio aflita, não havia dado tempo,
muito serviço, dona Elisa pedira umas coisas meio urgentes... Ciro a
interrompeu. Não gostou nada. Chegou mais perto, rosto fechado, e disparou o
aviso, que escutasse bem, Lurde (era como a chamava), sua marmita estava em
primeiro lugar, nada de coisa antes para fazer; que precisava comer para
trabalhar direito, além do mais ele era seu marido e ela tinha obrigação de
cuidar bem dele e da sua marmita. Por fim, despachou a ordem, que fosse arrumar
a marmita de uma vez. Enquanto ela se
apressava em aprontar a vianda, ele indagou por sua calça limpa. Ela se
atrapalhou de uma vez, ah, Ciro, não dera tempo de passar. Era demais para a
paciência dele. Repreendeu-a com mais rudeza, que escutasse bem, daquele jeito
não ia dar, eram casados fazia pouco tempo e ela já falhava nas obrigações, ela
que tomasse jeito. Lurdes desabou num choro sentido, amargo, em infelicidade
total. Entregou a marmita e Ciro foi embora.
Ela passou o dia a ruminar o
acontecido, cheia de culpa. Ele havia falado que daquele jeito não daria.
Talvez não desse mesmo, ele já estivesse desgostoso com a vida de casado, com
as dificuldades, por pouca coisa havia estrilado feio, não era coisa para
tanto, quem sabe a vida na cidade grande fosse demais para ela, criada no mato,
na vidinha simples de Prudentópolis, melhor fosse voltar para lá, viver com sua
gente, na sua terra. No cair da noite, Ciro chegou e a encontrou tomada pelos
pensamentos sombrios. Ela avisou que precisam conversar. Era sua vez. Tomou coragem. Tinha pensado bem
e talvez ele tivesse razão, que não daria certo, daí que melhor era voltar para
casa, ficar com os pais, vai ver é meu destino e você toca a vida como achar
melhor. Ciro retrucou em cima. Ela não estava entendendo, eram casados no papel
e na igreja, quem mandava nela, agora, era ele, seu marido, não era pai nem
mãe, não tinha história de voltar coisa nenhuma, que sua casa agora era ali,
com ele, e o caso estava encerrado.
No outro dia, ainda chorosa, foi
visitar a vizinha Bonifácia, negra já de certa idade, viúva, cabelos começando
a embranquecer, opulenta de corpo, proprietária de três casinhas, duas rendendo
aluguel. Lurdes contou-lhe a desdita, seu desejo de ir embora, falara com Ciro
e ele lhe respondera que quem mandava nela agora era ele, seu marido, que
esquecesse pai e mãe. Bonifácia, senhora experimentada nas idas e vindas da
vida, indignou-se, pôs as mãos nas fartas cadeiras e disparou que aquilo tudo
era uma besteirada do Ciro, quem ele pensava que era, homessa!, esse tempo de
homem mandar em mulher acabara fazia tempo, não tinha mais disso, não!, que
Lurdes precisava ter tutano, chega nele, olho no olho, e diz que ele não manda
em você de jeito nenhum, isso foi nos antigamentes, agora é tudo igual.
Lurdes voltou para o trabalho carregada
de ânimo e coragem. Bonifácia sabia das coisas, tinha sabedoria. No fim da
tarde, Ciro chegou. Sentou-se numa cadeira, na cozinha, perguntou se tinha
café, Lurdes buscou, serviu, esperou o primeiro gole. E começou. Que Ciro
ouvisse bem, não tinha mais essa de marido mandar em mulher, esse tempo passara,
agora era tudo igual e ela faria o que bem entendesse. Se desejasse voltar para
casa dos pais, iria, mas havia pensado e faria diferente: iria era se mandar
para o mundo!
Ciro não caiu para trás porque estava
sentado. A reação inesperada de Lurdes, cheia de coragem e direitos, o assustou,
coração acelerou-se, apertou o peito. Ante o desastre iminente, pediu calma,
que não ficasse nervosa, ela tinha razão, que história aquela de deixar marido?,
ele gostava dela, não precisa sair nada, um cuida do outro e a gente vai ser
feliz. Que esquecesse a bobagem e tudo se acertava.
Diante da capitulação mansa e doce de
Ciro, ela esqueceu, tocaram em frente em pé de igualdade e foram felizes,
conforme o possível nas contas da pouco generosa existência.
Por essas e outras se vê que o
machismo vai morrendo. Há resistências, os durões esperneiam, mas o destino
está selado e os machões terão de se conformar. É a marcha inapelável dos
tempos.
Março de 2016..
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