Retribuição
Cardoso Filho
Matilda tem
três pernas. Não, não. Não se trata de aberração da natureza. É uma cachorrinha
basset que Maura, minha filha, adotou. Já veio assim, com nome e falta da perna
traseira esquerda, e se desconhece a causa da mutilação. Pode ser sido atropelamento,
mas também maus tratos. É mistério indevassável. Quando a entregaram à minha
filha, já se encontrava amputada. É de desconfiar que tenha sido vítima de
alguma violência humana, por seu comportamento em relação a pessoas que lhe são
estranhas: reage com latidos a aparentar alguma agressividade, provável que em autodefesa
motivada por algum trauma.
Começou que Maura
queria uma cachorrinha. Perdera Dona, uma cadelinha também basset, depois de
uma convivência de uns quinze, dezesseis anos. Vieram a saudade e a sensação de
que o apartamento ficara vazio. Faltava-lhe vida; faltava a presença alegre e carinhosa
da amiga de tanto tempo, que, a certa altura, desenvolveu enfermidade
identificada como lúpus, e a doença, com os cuidados adicionais que requeria, mais
apertou o vínculo afetivo entre ambas.
Já escrevi
outras vezes sobre Dona. Narrei, inclusive, sua morte assistida diante da
velhice inapelável e cruel. Sem motivo para prolongar o sofrimento, Maura tomou
a decisão dolorosa de oferecer-lhe a misericórdia do fim. Pois bem, sem Dona,
Maura resolveu arrumar outra cachorrinha. Comentou a respeito e a aconselhei a
pensar mais sobre o assunto. Bichinho em apartamento dava trabalho, dava
despesas, mas isso e mais aquilo, argumentos que eu utilizava para convencer a
mim mesmo de não arrumar um cão, ainda que sentisse saudade do tempo em que
desfrutei da companhia desses animais tão doces e amigos. Mas ela estava
decidida e mais: queria um animal sem pedigree, e podia ser um vira-latas
qualquer, e que tivesse algum dano físico.
Eis o
admirável de tudo: querer um bichinho deficiente, mutilado. Um animal que
precisasse, mais que outros, de carinhos e cuidados. Não lhe bastaria amar uma
cachorrinha como tantas, fisicamente perfeita; precisava de uma que lhe exigisse
mais generosidade do coração, mais desprendimento e dedicação. Seu desejo se
concretizou quando uma entidade protetora de animais lhe avisou que havia uma
cadelinha mutilada à espera de adoção. Foi até lá, viu e se apegou na hora, e
nem o fato de a cadelinha não possuir controle sobre suas funções fisiológicas,
outra sequela da mutilação sofrida, a fez recuar.
Foi assim que
Matilda ganhou acolhimento, carinho e morada. Dói vê-la em sua deficiência e mais ainda quando se
cogita que isso tenha decorrido de violência humana. É hipótese atroz; melhor
supor que tenha sido por, digamos, atropelamento involuntário, embora não saia
da mente que a capacidade humana para a maldade não encontra limites. Diante da
radiografia de sua coluna, um veterinário admirou-se de que Matilda conseguisse
andar. O dano sofrido seria para lhe impedir de locomover-se sem arrastar a
parte traseira do corpo. No entanto, caminha bem, a seu modo. E não apenas anda.
Corre, e como corre!, Vai meio de lado, compensando a ausência da perna
traseira esquerda, e dispara pelos parques.
Narrei o caso
a meu sobrinho Nelson Cardoso Filho, profissional em Biossíntese e Psicoterapia
Somática, e ele definiu, de modo inspirado, a disposição e acolhimento de minha
filha em relação a Matilda: comovente retribuição à Existência. E recomendou-me
que pusesse tudo numa crônica para repartir a história com os amigos leitores. Foi
o que fiz.
Junho de 2016.
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