quinta-feira, 30 de junho de 2016

Espera

Espera
Cardoso Filho

          Olhou pela janela o entardecer bonito, o Sol baixando e alaranjando o poente. Um resto agradável de calor e claridade flutuavam na tarde que se desfazia. Com leve emoção, apreciava a beleza da despedida. Cenários assim, quase indiferentes antes, sensibilizavam mais, agora. O coração vinha fraquejando, sinalizava cansaço, podia ser a qualquer instante a pane definitiva, como o motor fatigado de um velho avião. De sua parte, havia momentos de querer ir, outros, de não querer. Reconhecia que o coração tinha dado o que podia e a existência cheia de não pode isso e aquilo cansava e desanimava. Mas queria um pouco mais. Abrigava ainda alguns planos, alguns desejos, entre os quais ver Toninho, o último neto, graduar-se na universidade. Queria também andar outra vez de motocicleta. Uma loucura, achavam, talvez fosse, mas que importava? Loucura boa que traria prazer e seria como voltar no tempo vinte, trinta anos. Sentiu o coração se acelerar. Palpitava com lembranças guardadas com carinho. O Sol se deitou mais e o céu ganhou tons violáceos, cedendo às primeiras sombras. Logo surgiriam as estrelas, as poucas que o céu da cidade ainda mostrava, e lembrou-se de outro desejo, agora tão remoto que se convertia em tolice: ver o céu de um deserto. Que fosse o de Atacama, no Chile, mais próximo, e lembrou-se de Saint-Exupéry referir-se poeticamente ao céu noturno do Saara, empoeirado de astros, como um áquario de estrelas. Ah, que felicidade seria contemplar o firmamento saturado delas! E suprema ventura seria, num estalo, num último clarão de consciência, partir contemplando a amplidão faiscante de cristais. Adormecer para sempre sob a luz pálida de bilhões e bilhões de estrelas, recoberto pela beleza do universo. Não seria pedir muito. Seguir tendo por última visão o que mais apreciava. Para o mar, não ligava. Tinha medo, e a ideia de morrer afogado sempre o apavorara. Achar doce morrer no mar era coisa para Dorival Caymmi. E o que menos gostava era da cidade entulhada de edifícios, de carros, de gente. O caos urbano. Triste fim, acabar nesse amontoado fuliginoso e barulhento, distante dos campos verdes e das montanhas azuis. Os últimos raios de sol se apagavam e havia agora no horizonte apenas tênue claridade. Mais um dia se esgotava nessa espera sem angústia, sem tortura, apenas incerta e vedadora de planos mais encompridados. Não fora hoje, podia ser amanhã. Estava preparado para o encontro marcado desde o começo, sem nenhum medo especial. Sem se entregar, mas sem resistir, deixando que as coisas tomassem seu livre curso, como a natureza desejasse e o coração abatido permitisse. Só queria que houvesse sol. Que fosse um dia claro e cálido, melhor se de primavera. Um desejo à toa, sabia, porque não desfrutaria dessa derradeira luz.
          O alarido da casa o retirou da janela e afastou os pensamentos. A vida seguia em seu compasso imutável e eterno. Se não fosse naquela noite, se não fosse no outro dia, e enquanto não viesse, continuaria a sonhar com campos verdes, montanhas azuis e o céu estrelado sobre um deserto.


Junho de 2016.

Um comentário:

  1. Lindo texto.
    Leva-nos à compaixão por alguém que aguarda o fim, com pitadas de melancolia sem pieguice.
    Gostei.

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