Espera
Cardoso Filho
Olhou pela janela o entardecer bonito,
o Sol baixando e alaranjando o poente. Um resto agradável de calor e claridade flutuavam
na tarde que se desfazia. Com leve emoção, apreciava a beleza da despedida.
Cenários assim, quase indiferentes antes, sensibilizavam mais, agora. O coração
vinha fraquejando, sinalizava cansaço, podia ser a qualquer instante a pane
definitiva, como o motor fatigado de um velho avião. De sua parte, havia
momentos de querer ir, outros, de não querer. Reconhecia que o coração tinha
dado o que podia e a existência cheia de não pode isso e aquilo cansava e
desanimava. Mas queria um pouco mais. Abrigava ainda alguns planos, alguns
desejos, entre os quais ver Toninho, o último neto, graduar-se na universidade.
Queria também andar outra vez de motocicleta. Uma loucura, achavam, talvez
fosse, mas que importava? Loucura boa que traria prazer e seria como voltar no
tempo vinte, trinta anos. Sentiu o coração se acelerar. Palpitava com
lembranças guardadas com carinho. O Sol se deitou mais e o céu ganhou tons
violáceos, cedendo às primeiras sombras. Logo surgiriam as estrelas, as poucas
que o céu da cidade ainda mostrava, e lembrou-se de outro desejo, agora tão
remoto que se convertia em tolice: ver o céu de um deserto. Que fosse o de Atacama,
no Chile, mais próximo, e lembrou-se de Saint-Exupéry referir-se poeticamente
ao céu noturno do Saara, empoeirado de astros, como um áquario de estrelas. Ah,
que felicidade seria contemplar o firmamento saturado delas! E suprema ventura
seria, num estalo, num último clarão de consciência, partir contemplando a
amplidão faiscante de cristais. Adormecer para sempre sob a luz pálida de
bilhões e bilhões de estrelas, recoberto pela beleza do universo. Não seria
pedir muito. Seguir tendo por última visão o que mais apreciava. Para o mar,
não ligava. Tinha medo, e a ideia de morrer afogado sempre o apavorara. Achar
doce morrer no mar era coisa para Dorival Caymmi. E o que menos gostava era da
cidade entulhada de edifícios, de carros, de gente. O caos urbano. Triste fim,
acabar nesse amontoado fuliginoso e barulhento, distante dos campos verdes e
das montanhas azuis. Os últimos raios de sol se apagavam e havia agora no
horizonte apenas tênue claridade. Mais um dia se esgotava nessa espera sem
angústia, sem tortura, apenas incerta e vedadora de planos mais encompridados.
Não fora hoje, podia ser amanhã. Estava preparado para o encontro marcado desde
o começo, sem nenhum medo especial. Sem se entregar, mas sem resistir, deixando
que as coisas tomassem seu livre curso, como a natureza desejasse e o coração
abatido permitisse. Só queria que houvesse sol. Que fosse um dia claro e cálido,
melhor se de primavera. Um desejo à toa, sabia, porque não desfrutaria dessa derradeira
luz.
O alarido da casa o retirou da janela
e afastou os pensamentos. A vida seguia em seu compasso imutável e eterno. Se
não fosse naquela noite, se não fosse no outro dia, e enquanto não viesse, continuaria
a sonhar com campos verdes, montanhas azuis e o céu estrelado sobre um deserto.
Junho de 2016.
Lindo texto.
ResponderExcluirLeva-nos à compaixão por alguém que aguarda o fim, com pitadas de melancolia sem pieguice.
Gostei.