O orador
Cardoso Filho
Conversavam no velório. “Foi um bom
sujeito”, disse um. E o outro: “É verdade, muito boa gente”. Seguiram nas
frases convencionais dessas ocasiões, entre elas a inevitável “para morrer
basta estar vivo”, dita sempre com um suspiro filosófico de quem afirma algo
inédito, definitivo e incontestável. Amado lá estava, esticado no caixão, com
expressão serena, parecia dormir, efeito da boa maquiagem. “Mas cometeu lá seus
deslizes”, disse o primeiro, fazendo concessão aos fatos. “É, cometeu, mas quem
não comete, né?”, ressalvou o outro. Um terceiro, desconhecido, bem-trajado, de
terno e gravata, ouvia ao lado e se aproximou. Apresentou-se como velho amigo
de Amado, sabedor como ninguém de sua vida, conviveram desde a adolescência,
assistira aos seus altos e baixos. “Creio que ninguém o conheceu mais do eu”,
afirmou com certa arrogância, chamando para si toda a competência sobre a
matéria. “E vou lhes dizer uma coisa: no fundo da alma, foi um romântico, um
sonhador, um nostálgico. Coisas que só a nossa estreita convivência permitia
perceber. Além do mais, carregava
segredos que nem eu descobri. Sabe aquela caixa escondida que cada um tem
guardada no peito, na alma, sei lá, e não abre para ninguém? Pois é, Amado
tinha a sua, não falava a respeito, mas arrisco dizer que um pouco do conteúdo
eu sabia. Outro detalhe é que deixou de
acreditar na humanidade, sem endurecer o espírito. Continuou o mesmo, fazendo o
que achava certo e preciso, embora com certa amargura”. Parou um instante e foi
atalhado: “Desilusão, na certa. O Amado teve algumas”. Retomou a apreciação:
“Teve sim suas decepções, mas nunca culpou ninguém. Achava que, no final das
contas, era ele o responsável pelas coisas que lhe aconteciam, não jogava responsabilidade
para os outros e reconhecia os erros. Teve lá seus impulsos, aquelas decisões
fatais que cobraram seu preço”.
Afastou-se dali, circulou por outras
rodas na condição de amicíssimo de Amado. Até que foram chamados para a oração
que um padre capuchinho faria. O padre, idoso, de longa barba branca, apoiado
numa bengala, vestido numa gasta batina marrom e calçado de velhas sandálias, de
vez em quando precisando sentar-se para breve descanso das pernas e costas doídas,
fez as orações, entremeando-as com considerações sobre a vida e a morte. A
morte não era o fim, se morria para renascer na ressurreição prometida, segundo
a crença em Cristo. E acrescentou que Amado tivera, afinal, uma existência cristã,
se não pela presença assídua nos templos, pelo menos no comportamento em geral.
Por isso, seria bem acolhido na outra vida, na que não se morre, pois Deus haveria
de lhe conceder o perdão pelos eventuais pecados não saldados por aqui, e cada
qual dos presentes refletiu sobre suas dúvidas e misérias.
Antes de o corpo baixar à sepultura, um
familiar indagou se alguém queria dizer algumas palavras, e os olhos se voltaram
para o amigo que alardeara ser o que mais o conhecera. Ele aceitou aparentando modéstia,
abeirou-se mais da cova, pigarreou para limpar a garganta, apanhou um lenço no
bolso e começou: “Conheci muito bem o Amado. Não sei se conseguirei dizer o que
gostaria em sua homenagem, não por falta de motivos, que muitos há, mas porque
a emoção ameaça me embargar a voz. Pois bem, serei breve, meu fraterno Amado, amigo
de tantas jornadas e confissões mútuas. Nós, aqui presentes neste momento
solene e pleno de mistério, e todos os que o conheceram, somos testemunhas
desta verdade: se todos os homens fossem como você, o mundo seria um lugar bem
melhor e mais digno. Viveste com dignidade o que te foi dado viver. Segue, pois,
Amado amigo, para a Eternidade, sob os louros de teus bravos feitos e
acompanhado de nosso sentido pranto e saudade. Foste um vencedor! Que Deus, em
Sua misericórdia infinita, te acolha e os Anjos exultem à tua passagem! Colhe
nos páramos celestiais a recompensa que fez por merecer”. Enxugou os olhos com
o lenço e recolheu-se ao silêncio contristado e profundo, só interrompido por
cumprimentos ligeiros, sob os olhares agradecidos e emocionados dos familiares
do morto.
Findo o sepultamento, um dos presentes
dirigiu-se ao orador, que se afastava com bastante pressa. Cumprimentou-o pelo
breve mas belo discurso e manifestou a curiosidade de não o ter conhecido antes,
pois também fora muito amigo do Amado. O orador segurou-o pelo braço, pararam,
aproximou-se como se fosse cochichar e confidenciou: “Vou lhe revelar um
segredo: gosto muito de enterro. Não sei por quê, mas desde pequeno sou assim. É
esquisito, eu sei, mas é o meu jeito. Chega a ser vício. E gosto demais de
discursar. Vou a todos os funerais que posso e faço isso, de discursar, sempre
que dá. Aproveito qualquer deixa. Só não discurso em enterro de suicida. Aí
fica difícil. Também não dá em enterro de criança ou de jovem e muito menos de
mulher, que pegaria mal. No restante, é fácil. Na verdade, não conheci o Amado,
mas isso não importa, o discurso é sempre o mesmo. Circulo pelo velório, converso,
colho alguns dados junto aos presentes, mudo um pouco aqui e ali, adapto ao
caso, à religião, dou uns enfeites e pronto! Não tem erro”. E despediu-se feliz.
Junho de 2016
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