quinta-feira, 16 de junho de 2016

O orador

O orador
Cardoso Filho

          Conversavam no velório. “Foi um bom sujeito”, disse um. E o outro: “É verdade, muito boa gente”. Seguiram nas frases convencionais dessas ocasiões, entre elas a inevitável “para morrer basta estar vivo”, dita sempre com um suspiro filosófico de quem afirma algo inédito, definitivo e incontestável. Amado lá estava, esticado no caixão, com expressão serena, parecia dormir, efeito da boa maquiagem. “Mas cometeu lá seus deslizes”, disse o primeiro, fazendo concessão aos fatos. “É, cometeu, mas quem não comete, né?”, ressalvou o outro. Um terceiro, desconhecido, bem-trajado, de terno e gravata, ouvia ao lado e se aproximou. Apresentou-se como velho amigo de Amado, sabedor como ninguém de sua vida, conviveram desde a adolescência, assistira aos seus altos e baixos. “Creio que ninguém o conheceu mais do eu”, afirmou com certa arrogância, chamando para si toda a competência sobre a matéria. “E vou lhes dizer uma coisa: no fundo da alma, foi um romântico, um sonhador, um nostálgico. Coisas que só a nossa estreita convivência permitia perceber.  Além do mais, carregava segredos que nem eu descobri. Sabe aquela caixa escondida que cada um tem guardada no peito, na alma, sei lá, e não abre para ninguém? Pois é, Amado tinha a sua, não falava a respeito, mas arrisco dizer que um pouco do conteúdo eu sabia.  Outro detalhe é que deixou de acreditar na humanidade, sem endurecer o espírito. Continuou o mesmo, fazendo o que achava certo e preciso, embora com certa amargura”. Parou um instante e foi atalhado: “Desilusão, na certa. O Amado teve algumas”. Retomou a apreciação: “Teve sim suas decepções, mas nunca culpou ninguém. Achava que, no final das contas, era ele o responsável pelas coisas que lhe aconteciam, não jogava responsabilidade para os outros e reconhecia os erros. Teve lá seus impulsos, aquelas decisões fatais que cobraram seu preço”.
          Afastou-se dali, circulou por outras rodas na condição de amicíssimo de Amado. Até que foram chamados para a oração que um padre capuchinho faria. O padre, idoso, de longa barba branca, apoiado numa bengala, vestido numa gasta batina marrom e calçado de velhas sandálias, de vez em quando precisando sentar-se para breve descanso das pernas e costas doídas, fez as orações, entremeando-as com considerações sobre a vida e a morte. A morte não era o fim, se morria para renascer na ressurreição prometida, segundo a crença em Cristo. E acrescentou que Amado tivera, afinal, uma existência cristã, se não pela presença assídua nos templos, pelo menos no comportamento em geral. Por isso, seria bem acolhido na outra vida, na que não se morre, pois Deus haveria de lhe conceder o perdão pelos eventuais pecados não saldados por aqui, e cada qual dos presentes refletiu sobre suas dúvidas e misérias.
          Antes de o corpo baixar à sepultura, um familiar indagou se alguém queria dizer algumas palavras, e os olhos se voltaram para o amigo que alardeara ser o que mais o conhecera. Ele aceitou aparentando modéstia, abeirou-se mais da cova, pigarreou para limpar a garganta, apanhou um lenço no bolso e começou: “Conheci muito bem o Amado. Não sei se conseguirei dizer o que gostaria em sua homenagem, não por falta de motivos, que muitos há, mas porque a emoção ameaça me embargar a voz. Pois bem, serei breve, meu fraterno Amado, amigo de tantas jornadas e confissões mútuas. Nós, aqui presentes neste momento solene e pleno de mistério, e todos os que o conheceram, somos testemunhas desta verdade: se todos os homens fossem como você, o mundo seria um lugar bem melhor e mais digno. Viveste com dignidade o que te foi dado viver. Segue, pois, Amado amigo, para a Eternidade, sob os louros de teus bravos feitos e acompanhado de nosso sentido pranto e saudade. Foste um vencedor! Que Deus, em Sua misericórdia infinita, te acolha e os Anjos exultem à tua passagem! Colhe nos páramos celestiais a recompensa que fez por merecer”. Enxugou os olhos com o lenço e recolheu-se ao silêncio contristado e profundo, só interrompido por cumprimentos ligeiros, sob os olhares agradecidos e emocionados dos familiares do morto.
          Findo o sepultamento, um dos presentes dirigiu-se ao orador, que se afastava com bastante pressa. Cumprimentou-o pelo breve mas belo discurso e manifestou a curiosidade de não o ter conhecido antes, pois também fora muito amigo do Amado. O orador segurou-o pelo braço, pararam, aproximou-se como se fosse cochichar e confidenciou: “Vou lhe revelar um segredo: gosto muito de enterro. Não sei por quê, mas desde pequeno sou assim. É esquisito, eu sei, mas é o meu jeito. Chega a ser vício. E gosto demais de discursar. Vou a todos os funerais que posso e faço isso, de discursar, sempre que dá. Aproveito qualquer deixa. Só não discurso em enterro de suicida. Aí fica difícil. Também não dá em enterro de criança ou de jovem e muito menos de mulher, que pegaria mal. No restante, é fácil. Na verdade, não conheci o Amado, mas isso não importa, o discurso é sempre o mesmo. Circulo pelo velório, converso, colho alguns dados junto aos presentes, mudo um pouco aqui e ali, adapto ao caso, à religião, dou uns enfeites e pronto! Não tem erro”. E despediu-se feliz.


Junho de 2016

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