quinta-feira, 16 de março de 2017

Flanelinhas

Flanelinhas
Cardosofilho
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Cá entre nós, à boca pequena, confesso ao amigo leitor: aturo mal os guardadores de carros. Malandros, e cada centavo que lhes dou me dói, não pelo valor em si, que é pequeno, mas pelo que representa de rendição à extorsão. Pago pela pseudossegurança que me oferecem, sob pena de, se não o fizer, ter o carro riscado.  Nas proximidades do restaurante em que costumo almoçar, há dois deles, cada qual em seu pedaço de rua, na Barão de Guaraúna. Curioso é que, quando chego para estacionar, antes das onze e meia, nenhum dos dois se encontra a postos. O expediente deles ainda não se iniciou. Quando saio do almoço, lá estão, à espreita dos proprietários dos carros. Como o movimento do restaurante que frequento, e de outro que fica na esquina, deve se encerrar às quinze horas, concluo que o horário de serviço dos flanelinhas vai das doze às quinze horas. Depois, extenuados pela labuta, presumo que voltem ao descanso.
Não há como escapar. Ao desligar o alarme do carro, o dispositivo apita e as luzes piscam, a denunciar que vou sair, e o guardador vem ligeiro, e se assemelha a ave de rapina em busca da carniça. A carniça sou eu. Um deles, me chama de “meu querido”, numa intimidade folgada, como fôssemos amigos. De minha parte, tenho de ser cordial. Não lhe devolvo o mesmo falso carinho, que seria o fim da picada, mas sou obrigado a ser cortês, além de dar-lhe dois reais, para prevenir danos ao meu carro. Costuma puxar um pouco de conversa. Um dia, me conta que dormiu pouco porque o filho pequeno não deixou, incomodou a noite toda, talvez com cólica, sei lá, e eu brinco que filho ou filha é assim mesmo, fácil e bom de fazer, mas trabalhosos de cuidar. Doutra feita, me diz que passou a noite no velório de um amigo, assassinado com três tiros na cara, de madrugada no Largo da Ordem. Segundo ele, a vítima “pegou” a bronca de um amigo, significando que assumiu a encrenca, envolveu-se no conflito, apanhou de um bando e, por fim, já moído de pancadas, levou os três tiros desfigurantes. Quanto ao amigo, o dono da bronca, este escafedeu-se com a ligeireza de coelho, quando a coisa ficou feia. Como se vê, tudo gente boa, da melhor qualidade.
Pois assim estamos. Os mandriões infestam a cidade, sem nenhum interesse em trabalhar. Alguém dirá que, na crise econômica que atravessamos, faltam empregos, o que justificaria o “bico” de flanelinha. Conversa fiada. Mesmo nos tempos de economia boa e ofertas de empregos, eles não se interessam. A vadiagem lhes dá liberdade e o necessário para sobreviver sem fazer força. Vivem o dia a dia, sem preocupação com o futuro. Os trocados diários, se pagam a comida e a maconha, são suficientes, de modo que tocam a vida em sossego. E, se apertar, sempre haverá saídas mais lucrativas, como o tráfico de drogas.
Escrevi acima que suporto mal os flanelinhas, que já nem usam mais o pano. Nessa conflituosa relação existe, porém, uma exceção, e me permito repetir o caso. Trata-se do guardador que faz ponto na rua Moysés Marcondes, próximo aos restaurantes ali instalados. Outro vadio, é certo, todavia, por obra do destino, ou da gentileza que há tempos me fez, tornou-se, digamos, meu amigo, embora o termo esteja incorreto. Não é amigo; apenas conhecido, mas de um conhecimento que lhe dá a liberdade de me chamar de tigrão, designação que atribui também a outros “clientes”, de maneira que não se trata de tratamento diferenciado, mas, seja como for, tem um quê de afetuosidade que afaga o ego do outro. Tigrão enche o peito, lembra força e virilidade, e o sujeito se sente bem. Detestável seria o tratamento de tio. Como tudo começou? Bem, inicou com uma sacolinha de biscoitos que deixei cair na rua, sem me aperceber. Pois o guardador, o Sandro, a apanhou, apressou-se em me alcançar e me a entregou. Daí para os cumprimentos diários e os trocados foi um pulo. Atualmente, sente-se à vontade para, vez ou outra, me “morder” um lanche, ou almoço. Ou uma ajuda para comprar passagem de ônibus para não sei onde e nem por quê. Mas é bom frisar. É o único guardador de carros que desfruta de minha tolerância voluntária e pacífica. Os demais, não.

Março de 2017.

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