domingo, 5 de março de 2017

A Neusa da minha rua

A Neusa da minha rua
Cardosofilho

Frequenta as cercanias de minha morada uma curiosa personagem. Mulher ainda moça, mulata, a idade indefine-se por trás de sua aparência de mendiga, sem cuidado e sem higiene, a cabeça coberta por vasta cabeleira pixaim. Mas arrisco, vá lá, trinta anos. Já a havia observado caminhando pela calçada, arrastando duas sacolas cheias de panos e sabe-se lá mais o quê. Desgrenhada, suja, aparentava alguma deficiência mental. Certo dia, a vi sentada sob a sombra de uma árvore na rua Moysés Marcondes. Seriam, talvez, dez horas da manhã. No fim da tarde, encontrei-a no mesmo lugar, imóvel como se as horas não tivessem passado.
Outro ponto de parada que ela aprecia é na calçada junto à parede da panificadora Mister Pão, na confluência das ruas Marechal Mallet e Manuel Eufrásio. Ali, fica por horas, perdida em seu mundo. Ou vagaria em sonhos? De onde veio, quem é, o que pensa, se pensa, da vida, são perguntas que ocorrem. Ao lado da curiosidade que desperta, sua imagem é pungente.
Dia destes, pela manhã, saía com o carro da garagem e, quando cheguei na calçada, a vi. Parara a alguns metros, em pé, esperando a manobra do carro para seguir caminhando. Apanhei minha carteira, achei uma nota de cinco reais, abaixei o vidro e lhe ofereci o trocado para o café da manhã. O insólito veio então. Sorrindo, com certa meiguice, me disse que não aceitava dinheiro; só comida e roupa.  Insisti, seria só para um cafezinho, um pequeno lanche matinal, mas ela tornou a agradecer. Só comida e roupa. Guardei o dinheiro e toquei o carro, com a surpresa bailando na cabeça.
O amigo leitor há de estar de acordo que o caso é singular. Mas tem mais. Uma vizinha, sabedora de que ela não aceita dinheiro, só roupa e comida, avisou-a que lhe buscaria, na mesma panificadora da esquina, que também serve almoço, uma marmita. Uma quentinha.  A estranha mulher avisou, no entanto, que não trouxesse carne de porco, que ela não come. E suco, que não fosse de manga, que ela também não aprecia.
Na tarde da Quarta-Feira de Cinzas, observei-a sentada ao pé de uma árvore, bem próximo de casa. Fui à panificadora e comprei quatro pequenos sanduíches, os tais “doguinhos”, e uma latinha de suco de uva. A atendente, sabendo do destino dos sanduíches, sugeriu esquentá-los. Com os sanduíches aquecidos e a latinha de suco, dirigi-me à mulher, que continuava sentada, entregue à solidão da tarde quente, meio para chuva. Ofereci-lhe o suco. Ela apanhou a latinha, examinou o rótulo, depois emitiu um ahhh... de decepção. Também não aprecia suco de uva.  Aliás, nenhum suco. Gosta é de guaraná. Anotei e lhe disse que da próxima vez não errarei. Mas gostou dos sanduíches, e logo se pôs a comer um. Perguntei-lhe o nome. Neusa. Idade? Ah, não, não podia revelar, que era feio, dito com um sorriso sem-jeito, no que revelou os dentes, os que restam, tortos e estragados. Vinha de onde? Norte do Paraná, de um sítio, e também não quis dizer próximo a que cidade ficava.
Ouvi dizer que sofreu desilusão amorosa, causa de seu autoabandono e penúria. Pode ser. Tem gente que acha que o fim de um amor é o fim do mundo, como se não existisse mais ninguém por aí, para ajudar a curar a dor. Sintoma de algum desequilíbrio da ideia, suponho. Nenhuma perda vale tanto. Dorme por aí, em qualquer lugar, se possível próximo de policiais, para se sentir mais segura. Sim, porque no Brasil ninguém está isento dos perigosos ataques dos demônios da noite. Bobeou, o mendigo pode morrer queimado como o índio Galdino, torrado, em 1997, por um grupo de cinco garotões da fina flor da sociedade de Brasília – lembram-se da tragédia hedionda? –, e até hoje ele aguarda, na vastidão dos mortos, justiça de verdade para os seus matadores. Ah, pobre Galdino! Que a Eternidade seja um lugar confortável para esperar.
Tendo outras notícias de Neusa, as relatarei ao amigo leitor.

Março de 2017.  

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