“Ô,
Alcides, abaixa esse rádio!” O comando irritado surpreendeu-o: “O que houve,
Glorinha?”. “Houve que esse teu rádio já encheu!”. Como se não fosse resposta
suficiente, indagou: “Encheu o quê, Glorinha?”. Ela estava para o crime, assim,
sem motivo, de repente: “Teu rádio me aborrece, enche o saco e pronto!” A
encrenca mais séria começou ali. Antes, havia as discussões normais de um
casamento desgastado por largos anos, mas agora a implicância vinha carregada
de ira, derramando mágoa, e representava uma escalada, uma subida de tom antes
jamais alcançado, e Alcides, surpreendido, acusou o golpe. Baixou o volume do
rádio, em seguida o desligou de raiva, engoliu a reação que queria explodir, ergueu-se
da poltrona e saiu da sala. Fervia por dentro, e o cérebro começou a pensar no
revide. Glorinha iria ter o que merecia pela desfeita que cometera.
Demorou pouco. De noite, foi escovar
os dentes, apanhou o tubo de creme dental, viu-o apertado no meio, do jeito que
ele considerava errado. Glorinha nunca aprendera que correto seria apertar o
tubo de baixo para cima. O defeito era pequeno, era antigo e até ali ele
relevara, mas para Alcides, na secura por uma desforra, foi o bastante: “Porra,
Glorinha, não aprendeu nem a apertar o tubo de pasta de dentes?”. Esse “nem”
punha a ofensa nas alturas. Trocando em miúdos, era o mesmo que dizer que ela
era uma besta pronta e acabada. Começou o bate-boca cada vez mais acalorado. Soltada
a trava, os impropérios partiram de cá e de lá.
O conflito conjugal se acentuou com o
passar dos dias e meses. Glorinha e Alcides encarniçaram-se, enfiaram-se nas
trincheiras e seguiram na troca de petardos de insultos e revolveram o passado
em busca de munição. Os amigos intercederam. Não valia a pena, tantos anos de
casamento e, de repente, o desentendimento, o amor virando aquela malquerença, intolerância
beirando a ódio, no fim de tudo por besteiras, coisas sem importância, tinham
de pensar no que já haviam vivido juntos, nos filhos, a família precisava ser
preservada, mesmo que ao preço de algum sacrifício, alguma concessão de parte a
parte, naquela altura seria idiotice jogar o casamento fora, e os argumentos se
acumulavam, sugeriram até aconselhamento profissional. Ninguém podia entender
que tudo começara com a implicância em cima de simples rádio, mania que Alcides
cultivara desde o começo do casamento, e se perguntavam por que raios só agora,
tanto tempo depois, aquilo virara detonador da beligerância.
Com a continuação das escaramuças
conjugais, ficou claro que as implicâncias com rádio e tubo de pasta dental haviam
sido apenas sintomas do cansaço do amor, exaurido pelo cotidiano de classe
média baixa, vivido sem maiores sofrimentos, mas com econômicas e modestas
alegrias. Por fim, os amigos se convenceram de que era caso sem conserto. Os
cristais haviam se partido. Glorinha e Alcides concordaram que a separação era
a saída, discordaram com a repartição dos bens, e nem eram muitos, e acabaram
em divórcio litigioso, que estraçalhou de vez a relação. Dividiram até os
amigos, que acabaram tomando o partido de um ou de outro. Poucos os que
lograram manter a neutralidade em meio à tormenta emocional.
Cada qual foi para o seu lado, tomou sua
estrada, tocaram a vida como podiam. Não se falaram por longo tempo. Ela, apesar
de alguma idade, tentou outros relacionamentos, com algum desespero em
encontrar novo companheiro para o resto dos dias, sofreu desenganos até
concluir que a pressa do coração era má conselheira e prejudicava o
discernimento. Era esperar e se conformar com a possibilidade de ficar sozinha.
O destino tinha seus próprios caminhos e tempo e não adiantava querer atalhos.
De seu lado, Alcides foi com menos ímpeto à luta. Aliás, para dizer a verdade,
nem foi. Ficou nos avulsos.Tinha consciência de suas limitações até financeiras,
já deixara longe o vigor da juventude e desconsiderou a possibilidade de nova
união.
Assim
o tempo correu, feridas sararam e mágoas se extinguiram. Do casamento com
Glorinha, Alcides guardava boas lembranças, e até os episódios do rádio e da
pasta dental lembrava como engraçados. Seria natural que ele e ela voltassem a
conversar sem animosidade, sem ressentimentos, e resgatassem recordações
agradáveis. Assim aconteceu. Não lograram colar os cacos, mas, um dia, encontraram-se
num café, ela saboreava uma torta de morango, ele, de limão, como velhos
amigos. Haviam tido uma vida até boa, pensando bem, e puxavam por recordações
amenas. A surpresa foi quando Glorinha, olhando para a xícara de café com leite,
disse com tímido sorriso, meio sem-jeito: “Engraçado, Alcides, sabe que de vez
em quando me bate a saudade do teu radinho?”.
Agosto de 2016
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