Assombração
Cardosofilho
Ficou
conhecida como a “árvore do enforcado”. Uma enorme paineira, antiga, frondosa,
crescida à beira de uma passagem de terra que ligava duas ruas ermas, suburbanas.
O caminho teria não mais que cem metros, e durante o dia a utilizavam para encurtar
a caminhada a pé. Carro não. E, de noite, ninguém arriscava. Aconteceu que, nela, havia muito anos,
enforcara-se um moço em desespero de amor. Ele amava uma formosa mocinha, ela
também o queria, mas a família da donzela se opôs ferozmente. Não era rapaz
para aquela flor, criada com tanto zelo e carinho. Ela merecia algo muito
melhor, sentenciaram, e ela foi incapaz de rebelar-se. Amava, mas renunciava
pela família. Contavam que ele propôs que fugissem. Ela recusou a loucura.
Seriam capaz de matá-la por tal atitude. Então, quis ele que se matassem.
Tomariam formicida e morreriam abraçados, e assim caminhariam para a
eternidade, onde, quem sabe, aquele amor fosse permitido. Seriam felizes assim,
mas ela também não aceitou. Deus que a livrasse de tal pecado! O moço, em
desespero pela perda de seu amor, comprou um pedaço de corda e sumiu de casa.
Foi encontrado no outro dia, dependurado num galho da paineira.
A tragédia ganhou a cidade, mil comentários surgiram,
contavam isso e aquilo, a imaginação febril tecia narrativas delirantes, ela
teria concordado com o suicídio por amor, mas, na hora final, desistira e não
fora encontrar o namorado, e que o suicídio por enforcamento, pela aterradora
dramaticidade do ato, teria sido a forma escolhida para puni-la pela traição. E
que ele lançara uma maldição à moça, à sua família e à cidade toda, e ninguém
sabia direito que maldição teria sido e o mistério adensou-se mais. Foi um
passo para a paineira transformar-se na árvore do enforcado e se tornar
mal-assombrada na crença geral. Diziam que passar por ali, à noite, era
perigoso, podiam aparecer coisas, como a alma do moço suicida, que não
descansava e penava no Além. E o caminho passou a ser evitado e a história
transmitiu-se de geração para geração e virou lenda. Naquela altura, a mocinha
formosa pivô do caso também já se fora, já mal lembravam seu nome, seria
Jacira, outros diziam Jandira, ou Janira, e o que ficou mesmo de certo foi a
árvore assombrada.
Um dia, em roda de amigos, Vandão, Aldrovando no registro
civil, bravateou que teria coragem de passar pelo caminho mal-assombrado, à
noite. Vandão era sujeito corpulento, forte e brigão quando bebia. Sóbrio, era
uma seda, brincalhão, bom companheiro, mas bastava exagerar no álcool, ou se o provocassem,
que ele desandava. Evitavam convidá-lo para festas, porque era capaz de
provocar encrenca por qualquer bobagem. Certa vez, acabara com um baile porque
a mocinha de quem gostava recusou-se a dançar com ele, naquela altura um tanto
embriagado. Vexado, avisou: “Pois então a mocinha pode pegar as tralhas e picar
a mula, porque neste baile não dança mais”. Um familiar, sentado à mesa da
mocinha, levantou-se para tomar satisfaçã, levou um sopapo e se esparramou
sobre mesas e cadeiras. Foi um alvoroço, com muito custo contiveram Vandão, e
precisou de uns dez, e o baile terminou ali mesmo.
Combinaram com ele o
dia da proeza. Seria numa sexta-feira, às onze e meia da noite, dia e hora
lúgubres e apropriados para o desafio. Um grupo iria com ele até o início do
caminho e outro o aguardaria na saída. Vandão não tinha como recusar, embora,
no íntimo, quem sabe amargasse algum arrependimento, mas, tido e havido como
valente, e o era, não podia desistir do que dissera ser capaz de fazer. Ignorava,
naturalmente, que os amigos lhe preparavam uma galhofa. Um terceiro grupo se
postaria bem próximo da paineira, ocultado no mato, munido de latas vazias de
cinco litros de querosene Jacaré e pedaços de pau, lanternas e um lençol
branco.
No dia combinado, seguiram eles, Vandão à frente um tanto
calado, meio alheio à conversa geral. A noite era escuridão plena, sem lua, e
no beco não havia iluminação. Na entrada, despediram-se dele, desejam-lhe boa
sorte, que nada de mal lhe acontecesse, deram-lhe tapinhas nas costas para
encorajá-lo, e ele partiu num passo algo hesitante. Embrenhou-se na escuridão e
logo sumiu. Aproximava-se da paineira do enforcado. De repente, viu luzes
piscando no matagal que margeava o caminho. Piscavam em vários pontos, pareciam
diabos saltitantes. Um negócio meio louco, sem explicação. Ouviu um uivo
medonho. Apressou o passo, já tomado de pânico. Súbito, explodiu um infernal
barulho (eram as latas de querosene sendo furiosamente batidas com pedaços de
pau). Em seguida, um vulto branco cruzou o caminho. Então Vandão disparou de
vez, arrepiado até a medula, desesperado para atingir o fim da passagem
maldita. Chegou ofegante, muito pálido, sem querer conversar, e os amigos que o
aguardavam logo sentiram o cheiro do medo que ele exalava e, sob a luz mortiça
de um poste, viram que suas calças estavam sujas. Contam que os autores da zombaria,
receosos de revelar-lhe a armação, silenciaram, e o tenebroso episódio
incorporou-se à lenda.
Agosto de 2016.
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