Liberdade, tirania, insanidade e religião
Paulo Rogério Mudrovitsch de Bittencourt
No fim da década de 1990, passeando pelo sul da
Escócia em um intervalo de congresso, uma eslovena tentou convencer a mim,
croata, que a guerra da Iugoslávia era o início da 3ª Guerra Mundial, a ser
travada entre islâmicos e ocidentais. Hoje, o Papa Francisco não só usa esta
equação frequentemente em seu discurso, como toma atitudes muito claras nesta
direção. Dialoga com seus pares judeus e ortodoxos, e faria o mesmo com um
líder islâmico se houvesse um interlocutor definido. Tem a confiança e obtém
resultados de negociações com agnósticos e ateus com facilidade espantosa, como
as famílias Obama, Clinton e Castro.
Há poucos anos coloquei este assunto em um
artigo breve (Gazeta do Povo, referência perdida!) e outro completo (A
Liberdade e Tirania, passando por Mill, Berlin, Gray, Obama e Maomé. Iátrico
(CRMPR) 31:15-17, 2013). Assim como meu livro Fora da Casinha, estas ideias
previram e explicam em parte o caos atual do confronto com os islâmicos. Mas
precisam uma revisão para acomodar fenômenos como Donald Trump, o Brexit e a
invasão da Europa pelos imigrantes.
Alguns eventos podem provocar uma emoção descrita em
inglês como “baffling”, do verbo “baffle”, originado do provençal ou francês
antigo, da sensação de perplexidade que atingiu Hillary Clinton quando o
embaixador americano foi morto em Benghazi em 2012. A mesma sensação criada
pelo filme sobre o Profeta divulgado na Califórnia logo em seguida. Líderes
islâmicos demoraram para resolver se orientavam seus pupilos a atacar ou
protestar nas ruas.
Em um artigo publicado na BBC em 2012, John Gray conta
que Isaiah Berlin ficou baffled quando, menino, testemunhou um policial ser preso
por revolucionários depondo a monarquia russa em fevereiro de 1917. O policial
estava apavorado, apesar da revolução ter sido alegre, como foi a primavera
árabe em 2011. No fim de 1917 viria o golpe bolchevista. Isaiah Berlin
desenvolveu uma aversão definitiva à violência, apesar de ter se mudado para
Oxford, e de ter vivido em paz o resto de seus dias. John Gray relata que
próximo ao fim ele ainda contava a mesma história com frequência. Ambos são
historiadores de ideias.
Muitos filósofos do século XX criaram uma
associação de ideias de liberdade com democracia, de maneira que quando um
ditador é derrubado segue um governo mais democrático, e maior liberdade permeia
a sociedade. Esta é a ideia que fez governos ocidentais exportarem seus modelos
políticos para Iraque, Afganistão, Líbia. Como soviéticos, católicos e outros fizeram
no passado. John Stuart Mill, na época vitoriana, sabia que a liberdade pessoal
começaria a encolher quando os governos expressassem o desejo da maioria, ao
invés da minoria aristocrática, como era o caso no século XIX. O afilhado de
Mill, Bertrand Russell, morrendo aos 98 anos no seu País de Gales em 1970, chocou
muitos ao observar que a Grã-Bretanha do pós-guerra era mais democrática que o
país vitoriano de sua infância, mas as liberdades pessoais eram menores. No
artigo publicado no site da BBC em agosto de 2012, John Gray conclui que para
Mill, Russell e ele mesmo, democracia é uma coisa e liberdade, outra. Fora de
moda, mas correto.
Gray pondera que os mais velhos pensavam que
liberade era uma falta de restrição sobre como a pessoa pode agir. Uma ausência
de obstáculos para viver como escolher. Nesta visão, a liberdade é a segurança
para a pessoa exercer sua diversidade de objetivos e valores. Se liberdade é
vivermos como quisermos, não só tiranos ficam no nosso caminho. Governos
fracos, instituições falidas, conflito étnico, crime organizado, tudo incomoda.
No México atual e na Colômbia dos anos 80, os cartéis de drogas. Nos Balcãs dos
anos 90 as milícias étnicas ligadas ao crime organizado. Um estado de quase
anarquia ameaçou a liberdade pessoal mais que a tirania. Em outros casos, é o
fundamentalismo. No Iraque hoje não existe mais liberdade pessoal do que no
tempo de Saddam Hussein, para mulheres, gays ou minorias religiosas.
John Gray diz que os ocidentais erram quando acham
que os problemas islâmicos são uma fase; ignoram que o continente não atingiu estabilidade
150 anos após o início do colapso das monarquias europeias. A extrema direita
cresce e democracias tóxicas nacionalistas e xenofóbicas estão emergindo na
Grã-Bretanha, França, e mesmo em países das dimensões continentais como EUA,
Rússia, Turquia e Brasil.
O pensamento liberal de que a liberdade faz parte
da condição natural humana, e que só tiranos a estragam foi abalroado pela
realidade recente, que mais uma vez indica que quando um tirano é derrubado,
não se sabe o que vem depois, pode ser pior. Isaiah Berlin veio da Rússia dos
czares; já sabia que tiranias monárquicas eram contos de fadas perto do
bolchevismo. Obama e Clinton usaram e liberdade intelectual para entrar no jogo
da violência islâmica; apostaram no baffling, na perplexidade. ONGS colocaram
propagandas conflitantes nos EUA, nos domínios de radicais islâmicos e até no Waziristão.
Colaram cartazes em postes, colocaram filmes nas TVs. Um negro e uma loira
sexagenária, dois tipos de seres que eles desprezam profundamente mataram Bin
Laden, e foram soltando os terroristas de Guantanamo. Líderes muçulmanos
começam a pedir calma nos protestos, perceberam que vão ser tachados de malucos
e fechados em um imenso curral de loucos, como estão a Síria e o Iraque, se
todas as representações ocidentais se retirarem. O Ocidente tentou dar um nó na
cabeça dos árabes fundamentalistas. Iranianos
e sauditas foram se acalmando. Obama martela que existe tolerância religiosa
nos USA, mas não por violência.
Após o trágico Bush, Barack marcou posição numa
linha de tiro de flecha de Kennedy a Bill Clinton aos nossos dias, o Bolt da
política mundial. Mais cerebral e marcante. Até os ternos de 2 botões colocou
em moda. A esperança é que esta capacidade da liberdade de produzir figuras
produtivas para o bem geral impeça a prevalência da insanidade da tirania.
Alguns imaginam que Michelle Obama venha a ser presidente quando suas filhas
estiverem na universidade. Diferentes conceitos de liberdade estão em conflito.
Uma opção é bater na tecla da lucidez, e se negar a aceitar que possa existir
uma guerra entre malucos, por uma ideia alucinatória, utilizando armas reais.
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Fora da casinha: um ensaio sobre a história da
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Fora da casinha: uma análise histórica da loucura 2ª
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