Caixa das memórias
Cardoso Filho
Duas
semanas após a morte do pai, resolveu abrir a caixa de papelão deixada com a
recomendação expressa de que só o primogênito a abrisse. Não o fizera antes por
um misto de tristeza e desinteresse. O relacionamento entre ambos esfriara,
quase ao congelamento, desde a separação conjugal, e a amargura provocada pelo
drama não amenizou com o passar dos anos. Pouco o via, pouco se falavam. Considerava
traição à família, e o sofrimento prolongado da mãe tornou o quadro mais
sombrio e difícil. Mas, agora, a morte punha uma pedra sobre tudo e oferecia
aos fatos nova dimensão. O que antes contava perdia sentido, as mágoas ficavam
para trás e deixavam apenas um vazio de sentimento. Foi à caixa. Tomou-a com
cuidado, levou-a à mesa e a abriu. Sobre a papelada acumulada, um pequeno
bilhete, escrito a mão com as letras bem-desenhadas que ele conhecia bem. Dizia
pouco. Apenas “Meu filho, examine o conteúdo sem pressa; talvez, ao fim de
tantas coisas juntadas, surja-lhe alguma compreensão”.
Pôs-se
a vascular os papéis, fotografias e cartões. Principiou pelos mais antigos,
depositados no fundo da caixa. Fotografias da infância. Seu pai menino montado
num triciclo. Fotos em branco e preto, amareladas pelo tempo. A velha casa onde
o pai nascera; a fotografia dele no primário, tirada na escola tendo por fundo
a bandeira brasileira; ele com seu cão preferido, do qual se recordava e falava
com a ternura de menino. Cartões que escrevera com caligrafia ainda defeituosa,
de criança, para o “Dia das Mães”. Havia muito a ver e queria agora examinar
com tempo cada papel, cada foto, cada cartão.
Em
muitos dias que se seguiram, voltou à caixa, agora revestida de interesse que lhe
provocava ansiedade. Fotos da mocidade, dos tempos de namoro, do casamento, dos
filhos pequenos, de algumas viagens, tiradas na época em que as fotografias
ganhavam materialidade e álbuns. Tivera do pai a imagem de alguém que lhe
chegara pronto e acabado. Os registros contidos na caixa iam, no entanto,
revelando-lhe um ser que se compunha lentamente sob a ação dos relacionamentos
familiares, das amizades e das vivências em um mundo que se transformava e se
tumultuava de modo frenético. Chegou aos registros feitos a mão. Inúmeros
continham confissões carregadas de pesar marcando seus últimos anos, como se o
envelhecer o tivesse levado a compreender a inutilidade de muito que lhe
parecera, no passado, importante. Eram o conversar com um confessor imaginário,
a quem podia abrir o peito, abrir a alma e revelar seus equívocos, suas dúvidas
e as mudanças que o acometiam. Por eles, percebia que o homem de mais de
sessenta revelava o espírito que a vida espremera em busca da essência, como a
moenda faz com a cana. Os papéis, semelhando um quebra-cabeça, foram montando o
pai que ele conhecera pouco. Vira-lhe a superfície e o julgara a partir da
perfeição que lhe idealizara. Fora-lhe uma fortaleza que ruíra, o herói que se
desfizera, a decepção que ele, filho, não engolira. Mas, agora, as breves
confissões mostravam a face humana daquele homem bom, falível como todos, feito
de virtudes e defeitos, muitas vezes confuso consigo mesmo e que chegara ao fim
sem respostas às suas próprias e mais importantes indagações. Homem de carne,
osso e nervos, sem a pureza das ficções, vulnerável a dúvidas e confusões de
sentimentos. Ao fim, um pai que os amou a seu modo, como sabia, com o carinho com
que colecionara ciosamente os cartões que os filhos lhe haviam oferecido e sobre
os quais provavelmente teria se debruçado incontáveis vezes, em dolorosas
viagens de recordações.
Fechou
a caixa. Não voltaria a ela, porque lhe doeria. E porque alcançara a
compreensão.
Agosto de 2016.
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