quinta-feira, 6 de julho de 2017

Diário de um pracinha

Diário de um pracinha
Cardosofilho

Em 1945, terminou a Segunda Guerra Mundial. Lá se vão mais de setenta anos. Os soldados brasileiros que dela participaram, em 1944/45, na Itália, os nossos pracinhas como carinhosamente foram chamados, integrantes da Força Expedicionária Brasileira (FEB), tinham, na época, no mínimo 18 anos, de modo que quase todos já desapareceram.
Desde o término do conflito, nos desfiles de Sete de Setembro eles passavam marchando cheios de orgulho e emocionavam os que lhes assistiam. A mim talvez mais, pois meu irmão Nelson Cardoso da Silveira foi também pracinha. Hoje, os envelhecidos e derradeiros guerreiros desfilam embarcados em veículos militares, sem condições de passar a pé. Em breve, não virão mais.
Recentemente, vi na parede de um restaurante quadro com a foto de um deles, ao lado de suas insígnias de terceiro-sargento e da FEB. Informei-me depois de que se tratava do falecido sogro do proprietário do restaurante. Lembrei-me, então, de Nelson. Retornei para casa e revi as anotações feitas por ele no tempo de expedicionário febeano. Ele embarcou no cais do Rio de Janeiro para a travessia até a Itália, em 18.09.1944, no transporte de guerra americano “General S. W. Menn”, que trazia pintado no casco o número 212. O navio só deixou o porto na madrugada do dia 22. Afastou-se puxado por dois rebocadores. Depois parou. Só às 12:15 recomeçou a navegar e alguém gritou ao perceber que ele se movia lentamente – “Começou a viagem! A cobra vai fumar!”. Nelson foi para o convés. O navio se distanciava do porto do Rio de Janeiro. Um momento triste e solene, em que seus olhos já procuravam com saudade o cais que aos poucos desaparecia. O edifício do jornal “A Noite”, com seu enorme letreiro no topo, demorou para sumir e de bem longe podia ainda ser divisado.  O grande relógio da Estação Central do  Brasil marcava 12:20. E Nelson narrava: “O ‘General S. W. Menn’ singrava a baía e as belas montanhas em torno dela pareciam nos acompanhar. Contemplei a figura do “Gigante Adormecido”, formado por uma cadeia de montanhas descrita pelo comandante do navio através dos alto-falantes. Um silêncio profundo tomou conta, só perturbado pelo barulho do mar e do vento. Ninguém tinha vontade de falar, e a saudade pairava sobre nós. Nesse momento, ouviu-se a voz do capelão Dom Francisco, proferindo de improviso uma comovente despedida à família, à Pátria, aos amores e amigos. Emocionado, eu olhava o perfil das montanhas, o Rio de Janeiro tão bonito, as águas que se fechavam à popa do navio, sem definir se sentia tristeza ou não. Iniciávamos a travessia do Atlântico, comboiados por destroieres brasileiros e destroieres e um cruzador americanos”.
Em outro momento, recordava ele: “Era 26 de setembro de 1944. Às 13:30, recebemos ordem de permanecer no convés para a cerimônia de entrada no Mar Mediterrâneo. Minutos depois soou o alarme e em seguida ouvimos a voz do comandante do navio, falando em inglês, traduzido para o português, num discurso curto. Após, falou o general de brigada  Oswaldo Cordeiro de Farias, comandante do Segundo Escalão da FEB. Encerradas as falas, os integrantes do 1º Regimento de Infantaria – Regimento Sampaio Corrêa – cantaram o hino da corporação, e uma onda de emoção arrepiou nossa pele. No mesmo embalo, entoamos o belo hino ‘Deus Salve a América’. Terminada a cerimônia, voltamos aos nossos compartimentos, mas logo fomos chamados de volta ao convés para nossa despedida aos navios que nos escoltaram na travessia do Atlântico. Ao lado de nosso navio seguia o outro transporte de tropas, o ‘General Meigs’. Por detrás, aproximou-se e se colocou entre os dois navios de transporte o cruzador americano, em cujo convés estava formada sua guarnição em seus uniformes imaculadamente brancos. No alto do mastro, drapejava a bandeira dos Estados Unidos. Prestamos continência e novamente cantamos o hino ‘Deus Salve a América’. A emoção foi tanta que pensei que desmaiava. No momento culminante, o pavilhão do Brasil subiu ao mastro do cruzador e tremulou altaneiro ao lado da bandeira americana. Senti algo estranho e enorme, como talvez nenhum de nós houvesse antes experimentado. Veio a vontade de gritar. Contemplava, com os olhos molhados, nossa bandeira batida pelo vento forte, a agitar-se tão bonita. Compreendi naquele momento o quanto ela simbolizava a Pátria. Então, ao comando do general Cordeiro de Farias, rompemos com irrefreável entusiasmo o Hino Nacional Brasileiro. Um nó formou-se em minha garganta e quanto mais alto cantávamos mais vontade tínhamos de cantar, a querer que nossas vozes fossem ouvidas em todas as partes do mundo conflagrado. Olhei para os demais soldados. A emoção estava em todos os rostos. A meu lado um soldado chorava, e as lágrimas desciam lentamente por sua face. Amor à Pátria, saudade, tudo se misturava e nos arrebatava.”
O terceiro-sargento artilheiro Nelson foi quase escritor e poeta, o que se constata nos esparsos escritos que deixou. Pena que não tenha sido. Seu diário de pracinha ficou, infelizmente, sem conclusão, mas ainda assim vale como lembrança vívida de um moço brasileiro cheio de orgulho e disposto a dar a vida pela Pátria. Todavia, olhando para o Brasil acanalhado de hoje, custa acreditar que o patriotismo que movia nossos soldados e o sangue deitado por eles no solo italiano valeram alguma coisa.

Julho de 2017.

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