quinta-feira, 13 de julho de 2017

Fim

Fim
Cardosofilho

Por acaso, soube que minha vizinha da casa à direita morreu. Aparentemente, ninguém da vizinhança viu nada, ninguém avisou, tudo transcorreu de forma silenciosa e calma. Surpreendente é que aparentava mais saúde que o marido, no entanto, ela foi primeiro e contrariou as estatísticas. Artes da vida. Deve ter sido o coração. Morte boa, ligeira, como deveriam ser todas. De uns tempos para cá, de vez em quando eu via uma ambulância da Eco parada em frente da casa e supunha que fosse para socorrer o combalido marido. Ele quase não mais saía à frente da casa, como antes, quando aparava a grama do jardim ou pintava a grade de ferro. Homem caprichoso, e eu sentia alguma inveja de sua disposição para esses cuidados caseiros. E, nos domingos, eram frequentes os churrascos que assava para família, na churrasqueira no fundo da casa, e dali ascendia o aroma tentador da carne assando na brasa que chegava ao meu apartamento.
Nos últimos tempos, ela é que aparecia cuidando do jardim, não aparando a grama, mas tratando de suas flores, ou conversando na calçada com conhecidas. Parecia bem de saúde. Pois bem, partiu antes e o viúvo encontra-se só na casa. Não sei como as coisas se arranjarão, pois é provável que ele não tenha condições de cuidar-se sozinho. Chega, assim, o momento crucial na vida dos que têm a (in)felicidade de viver além da conta. Acabam dependendo dos outros. Em princípio, dos filhos, mas, hoje em dia, poucos filhos conseguem ou querem cuidar dos pais idosos. A constatação é dolorosa, mas é preciso encarar o bicho de frente. E se os filhos não podem, quem há de fazê-lo? Nessas ocasiões, costuma aparecer a sugestão de internar numa casa para idosos, mas esses lares, quando razoavelmente aparelhados, custam muito caro e poucos podem enfrentar as despesas. E mesmo que o bolso aguente, assalta a torturante questão íntima: será certo colocar os pais num desses lares? Nossa cultura ainda absorve com dificuldade a solução. Estamos ligados a um passado, embora não muito recente, em que as casas não se fechavam. Casas grandes, famílias numerosas, sempre havia gente para olhar pelos velhos e cuidar dos bichos domésticos. Se alguém viajava, outros permaneciam em casa e cuidavam das tarefas. Isso de sair todo mundo e passar a chave na porta é coisa da vida moderna. De modo que cuidar dos velhos, a partir de certo ponto, torna-se assunto complicado de resolver. E se o idoso ou idosa sofre de doença degenerativa como a de Alzheimer, que exige cuidados especiais e cada vez mais especiais, aí então a porca torce o rabo de uma vez.
Bem, mudemos de rumo. Deixemos o meu vizinho viúvo com seu horizonte tomado de nuvens melancólicas. Todavia, continuemos na casa. Havia ali uma cadela, a Dona, de porte médio, toda preta, já envelhecida (havia outro cão, pequenino, demais latidor, mas esse não vem ao presente caso). Aliás, sobre ela escrevi em outra oportunidade, de modo que estou me repetindo, mas, torno a perguntar, o que seria deste cronista se não pudessem revisitar antigas histórias? Voltemos a Dona, a cadela preta. Costumava vê-la na entrada da garagem, deitada no piso cimentado para tomar sol, esse sol tão avaro para os curitibanos. Fazia-lhe muito bem para os ossos, como todos os cães sabem.
Eu passava em frente da casa e a chamava, e ela me dirigia um olhar de meiguice comovente. Havia a nos ligar o fato de que ambos sofríamos de tosse, cada qual por seu motivo. A dela, vinha de bronquite. Talvez viesse daí o elo forte de simpatia que nos aproximava. Entendíamo-nos, eis o caso. Mas ela também se foi. As casas começam a se fechar por aí: primeiro vão os cães, os gatos, os papagaios etc. Em seguida, os idosos remanescentes, de um modo ou outro, e não é preciso explicitar o meio. Por fim saem os móveis. Ficam as paredes nuas, testemunhas frias e mudas das histórias que ali se abrigaram.

Julho de 2017.

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