sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

A farsa

A farsa
Cardosofilho
“Você é uma farsa!” A acusação veio seca, derramando ira, rancor, mágoa, desamor represado sabia-se lá quanto tempo, no meio de uma discussão começada banal.  Ele sentiu o duro golpe. Ia responder, o retruque grosseiro queimava na ponta da língua, pedra quente pronta a ser cuspida, mas, como um boxeador atingido no fígado, dobrado de dor, não encontrou força para revidar. Conseguiu apenas olhar aturdido para ela e dizer, algo comicamente, “E quem não é?”, e ficou nisso. Virou-lhe as costas e retirou-se para o quarto. Sentiu-se só, como não se lembrava de ter acontecido, e era de novo o menino entregue a dores antigas.
          Por que tanto desamor, todo aquele cansaço de afeto? Para onde fora o bem-querer do começo, o carinho das mãos se tocando e entrelaçando os dedos, os olhares enternecidos? O que restara de tudo e de ambos? Não chorou. Dor seca, sem lágrima para escorrer pela face. Apenas o sofrimento íntimo, secreto, e veio a vontade de ir embora. Mas era o querer do menino. Não havia para onde ir, nem como recomeçar sob a velhice já pesando no corpo e na alma. Deitou-se na cama e encolheu-se como um feto, e sentiu-se pequenino, fraco, indefeso, com desejo de sumir, dissolver-se sem deixar vestígio como num lance de mágica de história infantil, e quando abrissem a porta nada encontrariam e o caso entraria para os acontecidos sem explicação.
          Permaneceu assim longo tempo, sem precisar quanto. Despertou da letargia quando a filha bateu à porta e o chamou para o jantar. Queria não ir, mas o dever familiar o fez levantar-se, passou água no rosto, penteou o cabelo e foi para a mesa, sentou-se no lugar habitual, permaneceu calado, apenas serviu-se de pequenas porções, e era visível aos filhos que pai e mãe não se fitavam, com o constrangimento e desagrado evidentes nos rostos carrancudos. Seria passageiro, pensaram, havia acontecido outras vezes, era normal num casamento de muitos anos, sem ideia de que, daquela vez, a colisão fora mais séria, mais funda, mais dolorosa, que abrira uma ferida braba de cura complicada.
          Mais doía era que a ofensa lhe tocara num ponto sensível. No fundo, sentia-se mesmo um farsante, um homem de inúmeras máscaras, que fingia felicidade que não possuía, que era agradável quando não desejava ser, que sorria sem vontade, que assentia querendo dizer não, que, enfim, representava como se desempenhasse papéis numa peça teatral. Amargura maior lhe sobreveio, lembrava agora, na ocasião em que soube que a sogra comentara que ele, genro, não era bem-sucedido, não era o marido que sua filha merecesse, incapaz de ganhar dinheiro como outros e de dar a ela o luxo e conforto que tanto queria. Desgostou-se, sofreu a humilhação calado, passou a odiar a sogra, mas ódio dissimulado, escondido sob o verniz da conveniência e bem-estar geral, mais outra máscara, e, quando ela morreu, sentiu-se patético no velório e enterro, ao representar o genro enlutado e receber as condolências fingindo dor inexistente, sem capacidade de perdoar a falecida.
          Pensou meses, sofreu em silêncio ruminando ideias e procurando saída. Concluiu que a armadilha era mortal. Não tinha como escapar. Um dia, estando ele a mulher a sós em casa, tomou coragem para falar. Chamou-a, sentaram-se à mesa vazia, apenas enfeitada no centro com copos-de-leite depositados num vaso alto de vidro azul. Olhou-a nos olhos. E então lhe disse que, na verdade, ambos eram farsantes. Que a vida deles fora, em boa parte, uma farsa, sustentada por ambos em nome da família, dos filhos, dos amigos até. O amor existira no começo, na juventude, ou o que pensavam que fosse amor, e, afinal, o que então sabiam a respeito afora o visto em filmes e lido em romances adocicados? E, portanto, naquela altura, que poderiam fazer, senão tocar a vida como estava e como podiam, na continuação da farsa? Era o que sobrava para eles. Pois o fizessem assim, sem ilusões, sem mais ambições, sem desejar o inalcançável. Talvez pudessem, desse modo, gozar um certo tipo de felicidade que vem da conformação aos arranjos do destino. Sem a luta e o ressentimento que desgastavam e envenenavam a alma. Fora o que lhes coubera, pois que então se servissem do pouco que ainda podiam desfrutar, conformados e agradecidos. Coube a ela, dessa vez, não ter resposta. Foi para o quarto, fechou-se e, talvez, tenha chorado, encolhida, se sentindo pequenina e indefesa.

Novembro de 2016.

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