A farsa
Cardosofilho
“Você é uma farsa!” A acusação veio seca, derramando ira,
rancor, mágoa, desamor represado sabia-se lá quanto tempo, no meio de uma
discussão começada banal. Ele sentiu o
duro golpe. Ia responder, o retruque grosseiro queimava na ponta da língua,
pedra quente pronta a ser cuspida, mas, como um boxeador atingido no fígado, dobrado
de dor, não encontrou força para revidar. Conseguiu apenas olhar aturdido para
ela e dizer, algo comicamente, “E quem não é?”, e ficou nisso. Virou-lhe as
costas e retirou-se para o quarto. Sentiu-se só, como não se lembrava de ter
acontecido, e era de novo o menino entregue a dores antigas.
Por que tanto desamor, todo aquele
cansaço de afeto? Para onde fora o bem-querer do começo, o carinho das mãos se
tocando e entrelaçando os dedos, os olhares enternecidos? O que restara de tudo
e de ambos? Não chorou. Dor seca, sem lágrima para escorrer pela face. Apenas o
sofrimento íntimo, secreto, e veio a vontade de ir embora. Mas era o querer do
menino. Não havia para onde ir, nem como recomeçar sob a velhice já pesando no
corpo e na alma. Deitou-se na cama e encolheu-se como um feto, e sentiu-se
pequenino, fraco, indefeso, com desejo de sumir, dissolver-se sem deixar
vestígio como num lance de mágica de história infantil, e quando abrissem a
porta nada encontrariam e o caso entraria para os acontecidos sem explicação.
Permaneceu assim longo tempo, sem
precisar quanto. Despertou da letargia quando a filha bateu à porta e o chamou
para o jantar. Queria não ir, mas o dever familiar o fez levantar-se, passou
água no rosto, penteou o cabelo e foi para a mesa, sentou-se no lugar habitual,
permaneceu calado, apenas serviu-se de pequenas porções, e era visível aos
filhos que pai e mãe não se fitavam, com o constrangimento e desagrado evidentes
nos rostos carrancudos. Seria passageiro, pensaram, havia acontecido outras
vezes, era normal num casamento de muitos anos, sem ideia de que, daquela vez,
a colisão fora mais séria, mais funda, mais dolorosa, que abrira uma ferida
braba de cura complicada.
Mais doía era que a ofensa lhe tocara
num ponto sensível. No fundo, sentia-se mesmo um farsante, um homem de inúmeras
máscaras, que fingia felicidade que não possuía, que era agradável quando não
desejava ser, que sorria sem vontade, que assentia querendo dizer não, que,
enfim, representava como se desempenhasse papéis numa peça teatral. Amargura
maior lhe sobreveio, lembrava agora, na ocasião em que soube que a sogra
comentara que ele, genro, não era bem-sucedido, não era o marido que sua filha merecesse,
incapaz de ganhar dinheiro como outros e de dar a ela o luxo e conforto que
tanto queria. Desgostou-se, sofreu a humilhação calado, passou a odiar a sogra,
mas ódio dissimulado, escondido sob o verniz da conveniência e bem-estar geral,
mais outra máscara, e, quando ela morreu, sentiu-se patético no velório e
enterro, ao representar o genro enlutado e receber as condolências fingindo dor
inexistente, sem capacidade de perdoar a falecida.
Pensou meses, sofreu em silêncio ruminando
ideias e procurando saída. Concluiu que a armadilha era mortal. Não tinha como
escapar. Um dia, estando ele a mulher a sós em casa, tomou coragem para falar.
Chamou-a, sentaram-se à mesa vazia, apenas enfeitada no centro com
copos-de-leite depositados num vaso alto de vidro azul. Olhou-a nos olhos. E
então lhe disse que, na verdade, ambos eram farsantes. Que a vida deles fora,
em boa parte, uma farsa, sustentada por ambos em nome da família, dos filhos,
dos amigos até. O amor existira no começo, na juventude, ou o que pensavam que fosse
amor, e, afinal, o que então sabiam a respeito afora o visto em filmes e lido
em romances adocicados? E, portanto, naquela altura, que poderiam fazer, senão
tocar a vida como estava e como podiam, na continuação da farsa? Era o que
sobrava para eles. Pois o fizessem assim, sem ilusões, sem mais ambições, sem
desejar o inalcançável. Talvez pudessem, desse modo, gozar um certo tipo de
felicidade que vem da conformação aos arranjos do destino. Sem a luta e o
ressentimento que desgastavam e envenenavam a alma. Fora o que lhes coubera,
pois que então se servissem do pouco que ainda podiam desfrutar, conformados e
agradecidos. Coube a ela, dessa vez, não ter resposta. Foi para o quarto,
fechou-se e, talvez, tenha chorado, encolhida, se sentindo pequenina e
indefesa.
Novembro de 2016.
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