Quase...
Cardosofilho
Descubro que sou quase filósofo.
Explico: Theo, garoto de dez anos, neto de Lili, minha mulher, e de quem sou
também “quase” avô, indicou-me em um trabalho escolar como “exemplo de caráter
construtivo”. Indagado pelo professor sobre a razão da escolha, respondeu que
eu era “quase filósofo”. Estou de posse do certificado que muito me honra e
enternece. Há, contudo, um porém. Ao lado do carinho que representa, a escolha
traz como consequência que, na presença de Theo, terei de só proferir frases
inteligentes, ou quase, em conformidade com o título que me concedeu, o que,
convenhamos, representa uma dificuldade e tanto. Como ser inteligente o tempo
todo, sem escorregar nas inevitáveis e predominantes banalidades e frases sem
brilho? Sem pingar pérolas a cada palavra?
Eis o problema com que me deparo e o
divido com o amigo leitor. Contei o sucedido e de pronto ressalvo que não vai na
revelação nenhuma pretensão ou exibição de vaidade; contei apenas para dizer
que somos, às vezes, mesmo que involuntariamente, farsantes. Fazemos de conta, usamos
máscaras, simulamos, dissimulamos, e por aí seguimos a levar a existência cheia
de exigências, percalços e circunstâncias complicadas, recorrendo a
malabarismos na interpretação de papéis. Desse modo, não é raro produzirmos
enganos. O verdadeiro “eu” só existe na solidão.
É óbvio – adjetivo que, por sinal,
Theo tem apreciado utilizar nos dias que correm – que a honraria muito me vale,
pois se reveste antes de carinho do que de qualquer outro significado. Mas
fica-me a pergunta: o que pretendeu dizer com a expressão “quase filósofo”? É costume
ligar a palavra filósofo à ideia de denso e notável saber, e logo vêm à
lembrança Sócrates, Platão e Aristóteles, cujas sabedorias monumentais iluminam,
desde a antiguidade grega, o pensamento da cultura ocidental. Partindo daí, “quase
filósofo” quereria, talvez, significar possuir apreciável saber, ainda que sem
a densidade e robustez do intelecto dos grandes filósofos. Em outras palavras,
eu ainda não teria chegado lá, e boiaria no ar a possibilidade de estar a caminho.
Mas não é nada disso. Há outra explicação: há uns três anos, ofereci a ele o
livro de minhas crônicas, mostrou-se interessado, quis saber se todos os demais
livros de minha biblioteca teriam sido escritos por mim, expliquei que não, que
eram livros que eu havia lido, e Theo deve ter então registrado, em sua
compreensão dos sete anos de idade, que eu escrevia livro e lia bastante, ingredientes
que contribuíram, agora, para a ideia de me considerar “quase filósofo”. Todavia,
hoje, aos dez anos, faltará pouco para desfazer o engano e avaliar com mais
precisão meus limites intelectuais, cada vez maior diante da vertiginosa
corrida do conhecimento humano.
Valerá, para auxiliá-lo na avaliação,
dizer-lhe que este escriba pouco ou nada tem de filósofo no sentido de possuir vasta
erudição. Que sou, como direi?, apenas um esforçado observador das coisas do
mundo, tentando aprender o melhor modo de percorrer a sinuosa, pedregosa e surpreendente
caminhada da existência, cuja complexidade ajuda a explicar meus tropeços,
engasgos e perplexidades.
Por fim, que meu querido Theo saiba
que, ao longo deste outono e do mais, ou pouco, que me couber, posarei com orgulho
de ser “quase filósofo”, título que ele me conferiu, fazendo o que me preenche
os dias e me dá prazer: cultivar os caros amigos mediante o ofício de escrever-lhes
modestos textos, que, se não me dá dinheiro, e não dá, põe sentido a este
veterano aprendiz.
Setembro de 2016.
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