Catita
Cardosofilho
Ela
fazia bonecas de pano para vender. Começou por necessidade, tomou gosto e
cuidou de aprimorar o trabalho. Queria que fossem lindas, que enfeitassem
quartos de meninas e mocinhas, que produzissem o encantamento que sentia ao
criá-las. Não seriam apenas bonecas de pano feitas na pressa de vendê-las,
destinadas a repousar num canto esquecido de uma casa ou em um baú, antes do
despejo definitivo junto com velhas tralhas. Fazia-as com demorado esmero e
lhes dava nomes: Alice, Bibi, Mel, Luiza, Laura etc., e, enquanto as costurava,
escolhia tecidos e imaginava modelos para vesti-las, e os vestidos precisavam
ser diferentes e bonitos, cada boneca seria única, como obra de arte, que não
deixava de ser. Nesse fazer delicado e envolvente, adquiriu o hábito de falar
com as bonecas. Parecia-lhe que isso lhes dava um pouco de vida, criava entre
criadora e criaturas um vínculo de afeto, um elo de amor, como fosse uma mãe
conversando com as filhas, e sofria ao pensar que, um dia, a qualquer momento, as
veria partir com uma compradora. Cuidariam delas com o mesmo amor com que as
havia feito? Mas precisava vendê-las. Constituíam seu ganha-pão, e então pedia
a cada compradora que cuidasse com carinho de sua boneca de pano.
Aconteceu com a primeira das bonecas
feitas algo interessante. Era a Catita. A artesã, ao terminá-la, detestou o
resultado. Olhou-a e deplorou: “Você está horrível!”, sentenciou, “parece uma
bruxa!”. O primeiro impulso foi desfazê-la, mas controlou-se e limitou-se a abandoná-la
num canto do ateliê. Seguiu em seu lavor e outras bonecas vieram, enquanto Catita
repousava desconjuntada, ora aqui, ora ali, conforme os panos e retalhos
mudavam de lugar. Se ocorria de a artesã lhe pôr os olhos, repetia com algum
desprezo – “Feia!”. Contudo, por motivo
sem explicação, não lhe dava fim, e Catita continuou sua sina de boneca feia,
jogada de um canto para outro no pequeno ateliê.
Certo
dia, porém, insinuou-se no espírito da artesã algo como remorso. Uma voz
interna parecia lhe dizer que, sim, fora cruel com sua primeira boneca de pano
e a maltratara com o desprezo. O sentimento foi crescendo, incomodando, e, por
fim, levou-a a resgatar Catita de seu abandono. Apanhou-a com o carinho do
arrependimento e disse-lhe que não merecia o que lhe fizera, desprezá-la por
sua feiura, que a faria linda e lhe daria o merecido lugar entre as outras
bonecas de pano. Dado instigante foi observar que os olhos da boneca se haviam
manchado. Algo havia borrado a tinta com que haviam sido desenhados. Afirmou-lhe,
por fim, que ela, Catita, não sofreria mais e seria feliz. Meticulosamente
pôs-se a refazê-la, e suas mãos trabalhavam com o carinho penitencial da mãe
que acolhia a filha que renegara por falta de beleza. Mesmo que não ficasse
bonita como as outras, não faria diferença. Seria a mais querida e por nenhum
valor e nenhuma precisão se desfaria dela. Pronta a boneca em seu vistoso
vestido, refeitos os olhos manchados, a artesã a abraçou com ternura. Tornara-se
para sempre a boneca de pano de seu coração.
Muito
anos depois, a artesã faleceu, e entre seus guardados descobriram Catita, e
seus olhos se haviam borrado outra vez.
Setembro de 2016.
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