Sumiço
Cardoso Filho
“Cansei.”
Apenas
isto. O verbo solitário no bilhete exprimindo o desencanto irremediável, a
fadiga definitiva e invencível. Foi só então que os familiares debruçaram-se sobre
aquela vida, na tentativa de compreendê-la. Ele desaparecera. Apenas isso.
Provável que estivesse morto, como o bilhete sugeria. Admitindo-se que tivesse
posto fim à vida, que razões teria para fazê-lo?, perguntavam-se. E, junto com
a investigação da polícia, puseram-se a procurar explicação.
Não aparentara infelicidade, pelo
menos não a que poria alguém tão no fundo do poço. Era certo que a vida não lhe
corria maravilhosamente. Havia dificuldades, contratempos e aborrecimentos, mas
a aposentadoria e as economias juntadas em muitos anos lhe permitiam viver
razoavelmente, sem luxos mas sem privações, dedicado a passatempos que lhe
agradavam, como ler livros. Ou escrever. Escrevia bastante, mas poucos liam
seus escritos. Quase ninguém tinha tempo, ou interesse, como sua mulher. Aquelas
folhas escritas eram uma chatice para ela, interessada em assuntos mais amenos.
Assim, ele escrevia e, provavelmente, se frustrasse diante da indiferença às
suas opiniões e imaginações. Um literato sem leitor, algo mortal para o sonho
de ter sua modesta produção reconhecida de algum modo, pouco que fosse. Nenhum
elogio, nem mesmo um reparo, uma crítica, e devia ter concluído que não reunia
nenhum mérito literário. Mas seria isso motivo? Não, certamente não.
Em casa, a vida lhe parecia em paz.
Mas teria sido paz ou o silêncio do cansaço, da falta de querer conversar? A
questão ficou sem resposta, pendente como mais uma possibilidade comprometedora
de seu ânimo. Analisaram o que puderam lembrar acerca de seus hábitos, dos
afazeres, do que teria dito num momento ou outro nas escassas conversas. Falava
pouco, reconheciam, absorvido pelos livros, pelo pensar solitário e mudo, exceto
pelas expressões de inconformismo diante dos rumos da vida moderna, muito
distante do que considerava bom e saudável, e as reclamações o faziam passar
por chato. Mas o que havia nisso tudo de excepcional, de muito grave?
Mistério maior consistia de que saíra
com a motocicleta e com seus documentos. Teria ido para onde? As investigações
corriam e não chegavam a lugar nenhum. Foram aos amigos. Alguma informação
poderia ajudar na elucidação. Não eram muitos, e algumas mortes o haviam
entristecido sobremodo, a ponto de fazê-lo comentar que a solidão aumentava e
era o castigo aos sobreviventes. Os amigos ajudaram pouco, mas um deles revelou
que, um dia, ainda recente, ele o procurara cheio de amargura. Encontrara-se
com o filho e vira neste uma existência que não dera certo, exprimida nos tênis
velhos e gastos, nas roupas simples e surradas e no olhar perdido como a pedir
socorro, e se perguntava o quanto teria falhado como pai e o que faltou fazer
para que tudo tivesse sido diferente com aquele homem já não moço, que ele
reencontrava criança em sonhos sofridos.
Recorreram até a uma vidente tida por
séria, que aconselhou que o procurassem na praia, mas as buscas deram em nada. Estaria
vivo?, perguntaram-lhe, e a vidente informou que sim, ainda, mas poderia não
estar quando o localizassem, e com essa ajuda não avançaram um centímetro. Por
fim, aventou-se até a imaginativa hipótese de que poderia ter ido para algum
lugar ermo, sido abduzido por seres extraterrestres e levado para as
profundezas das estrelas com motocicleta e tudo.
Apesar do empenho geral, não foi
encontrado, a polícia suspendeu a investigação e o mistério cristalizou-se. No
ano seguinte, a licença da motocicleta não foi renovada e o mesmo se deu nos
anos seguintes. Restou a sensação de que se despedira do jeito ideal. Como
fumaça que se evola e some no espaço, sem deixar vestígio.
Abril de 2015.
Edital do XXIV Concurso Nacional de Poesias Augusto dos Anjos está disponível em http://zip.net/btrpBf
ResponderExcluirSolicitamos o obséquio de dar ampla divulgação.
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