sexta-feira, 5 de junho de 2015

Sumiço

Sumiço
Cardoso Filho

          “Cansei.”
Apenas isto. O verbo solitário no bilhete exprimindo o desencanto irremediável, a fadiga definitiva e invencível. Foi só então que os familiares debruçaram-se sobre aquela vida, na tentativa de compreendê-la. Ele desaparecera. Apenas isso. Provável que estivesse morto, como o bilhete sugeria. Admitindo-se que tivesse posto fim à vida, que razões teria para fazê-lo?, perguntavam-se. E, junto com a investigação da polícia, puseram-se a procurar explicação.
          Não aparentara infelicidade, pelo menos não a que poria alguém tão no fundo do poço. Era certo que a vida não lhe corria maravilhosamente. Havia dificuldades, contratempos e aborrecimentos, mas a aposentadoria e as economias juntadas em muitos anos lhe permitiam viver razoavelmente, sem luxos mas sem privações, dedicado a passatempos que lhe agradavam, como ler livros. Ou escrever. Escrevia bastante, mas poucos liam seus escritos. Quase ninguém tinha tempo, ou interesse, como sua mulher. Aquelas folhas escritas eram uma chatice para ela, interessada em assuntos mais amenos. Assim, ele escrevia e, provavelmente, se frustrasse diante da indiferença às suas opiniões e imaginações. Um literato sem leitor, algo mortal para o sonho de ter sua modesta produção reconhecida de algum modo, pouco que fosse. Nenhum elogio, nem mesmo um reparo, uma crítica, e devia ter concluído que não reunia nenhum mérito literário. Mas seria isso motivo? Não, certamente não.
          Em casa, a vida lhe parecia em paz. Mas teria sido paz ou o silêncio do cansaço, da falta de querer conversar? A questão ficou sem resposta, pendente como mais uma possibilidade comprometedora de seu ânimo. Analisaram o que puderam lembrar acerca de seus hábitos, dos afazeres, do que teria dito num momento ou outro nas escassas conversas. Falava pouco, reconheciam, absorvido pelos livros, pelo pensar solitário e mudo, exceto pelas expressões de inconformismo diante dos rumos da vida moderna, muito distante do que considerava bom e saudável, e as reclamações o faziam passar por chato. Mas o que havia nisso tudo de excepcional, de muito grave?
          Mistério maior consistia de que saíra com a motocicleta e com seus documentos. Teria ido para onde? As investigações corriam e não chegavam a lugar nenhum. Foram aos amigos. Alguma informação poderia ajudar na elucidação. Não eram muitos, e algumas mortes o haviam entristecido sobremodo, a ponto de fazê-lo comentar que a solidão aumentava e era o castigo aos sobreviventes. Os amigos ajudaram pouco, mas um deles revelou que, um dia, ainda recente, ele o procurara cheio de amargura. Encontrara-se com o filho e vira neste uma existência que não dera certo, exprimida nos tênis velhos e gastos, nas roupas simples e surradas e no olhar perdido como a pedir socorro, e se perguntava o quanto teria falhado como pai e o que faltou fazer para que tudo tivesse sido diferente com aquele homem já não moço, que ele reencontrava criança em sonhos sofridos.
          Recorreram até a uma vidente tida por séria, que aconselhou que o procurassem na praia, mas as buscas deram em nada. Estaria vivo?, perguntaram-lhe, e a vidente informou que sim, ainda, mas poderia não estar quando o localizassem, e com essa ajuda não avançaram um centímetro. Por fim, aventou-se até a imaginativa hipótese de que poderia ter ido para algum lugar ermo, sido abduzido por seres extraterrestres e levado para as profundezas das estrelas com motocicleta e tudo.
          Apesar do empenho geral, não foi encontrado, a polícia suspendeu a investigação e o mistério cristalizou-se. No ano seguinte, a licença da motocicleta não foi renovada e o mesmo se deu nos anos seguintes. Restou a sensação de que se despedira do jeito ideal. Como fumaça que se evola e some no espaço, sem deixar vestígio.

Abril de 2015.  


          

Um comentário:

  1. Edital do XXIV Concurso Nacional de Poesias Augusto dos Anjos está disponível em http://zip.net/btrpBf
    Solicitamos o obséquio de dar ampla divulgação.
    www.academialeopoldinense.net

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