A crise
Cardoso Filho
“Aviso: a Farmaum comunica a todos que
não reabrirá.”
O recado escrito a mão com letras de
forma em um pequeno retângulo de papel branco, colado na parede frontal do
prédio, ao lado da estreita porta do estabelecimento, servia de epitáfio. A
farmácia ficava próximo de onde moro. Eu fora até lá comprar um analgésico.
Surpreendido, perguntei aos vizinhos o que acontecera, e as informações foram
tristes. O negócio morrera. As vendas não compensavam mais, não cobriam as
despesas. Nos últimos tempos, arrastava-se com a ajuda dos três filhos e de
terceiros penalizados com a agonia da farmácia e os apertos do proprietário.
Dias depois, passava outra vez em
frente da extinta farmácia e deparei com a porta entreaberta. Aproximei-me,
espiei, vi o dono ao telefone, em pé atrás do pequeno balcão. Entrei, aguardei
o fim do telefonema, apertei sua mão, perguntei-lhe o que acontecera. Ele
abriu-se, desolado. Precisara encerrar o negócio depois de tantos anos. A crise
brasileira liquidou-o de vez. As vendas haviam encolhido demais. Para agravar,
ele não era formado em farmácia e precisava manter farmacêutico como
responsável técnico, mas um só não bastava. Na ausência deste, para almoço, por
exemplo, tinha de ter substituto. Como não tinha, acabou multado pela
fiscalização, que não lhe dava sossego. Se pagar um farmacêutico já lhe
apertava a garganta, dois seria impossível, e passou a fechar a casa no
intervalo para a refeição, e farmácia fechada na hora do almoço era esquisito e
espantava freguesia, já pouca. E as vendas diminuindo. Além da concorrência com
as grandes redes de farmácias, o dinheiro cada vez mais curto dos fregueses. E
as contas vencendo, o aluguel vencendo, segura aqui e ali, protela esse e
aquele pagamentos, as despesas aumentando em casa com a esposa doente, inflação
comendo, fiscalização aborrecendo, ameaçando com mais multas, e nenhum
vislumbre de saída. Nem os três filhos, farmacêuticos formados, quiseram
assumir o negócio que já ia pelo despenhadeiro, tinham seus empregos em
farmácias que lhes pagavam mais, não iriam largar cinco, seis mil por mês, com
recebimento em dia certo, com chuva ou sol, em troca de uma farmácia modesta, em
ponto de pouco movimento, com estoque beirando a miserabilidade. E os filhos insistiram
com ele, fecha de uma vez e vamos partir para alguma outra coisa, outra coisa
que ninguém sabia e nem sabe o quê, muito menos ele, com idade chegando aos
sessenta, sem poder se aposentar agora e se pudesse seria aposentadoria pequena
demais, sem profissão definida, exceto a longa experiência em farmácia. Mas não
quer mais trabalhar nisso. Desgostou-se que chega. Contudo, precisa arrumar
trabalho, e se pergunta o que conseguirá, e talvez tenha de empregar-se mesmo em
farmácia, embora a desilusão e amargor com o ramo, mas a vida tem disso, é
comer como vem servido e é o que sabe fazer bem. Infelicidade foi não ter
estudado, obtido o diploma de farmacêutico que o livraria do assédio da
fiscalização e de pagar salários para diploma alheio. Mas matou mesmo o pequeno
comércio de tantos anos, ele insistia, foi a crise da economia brasileira.
Crise que não veio da fora, não proveio de guerra ou de algum desastre natural.
Foi feita aqui mesmo, pelo governo incompetente, populista e demagogo. Um
tremendo buraco que não tinha de existir.
O momento era desses em que as
palavras parecem inúteis, gastas demais para expressar pesar ou oferecer algum
consolo ou estímulo diante dos dias sombrios, e palavrão talvez fosse melhor. Apertei-lhe
a mão outra vez, e nem me lembro do que lhe disse em despedida.
Junho de 2015.
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