Cardosofilho
Na manhã chuvosa de 9 de novembro,
recebi a notícia do falecimento de meu primo Edeval Gonçalves de Azevedo. A
última vez em que tive o prazer de vê-lo deu-se em setembro de 2009, por
ocasião do lançamento, em Santo Antônio da Platina, de meu livro “Conversas na
Sala de Visitas”. Lá estava ele a prestigiar o evento e a ousadia literária do
primo. Aparentava boa saúde, mas não sei se, já então, os primeiros sintomas da
fibrose pulmonar que o matou se manifestavam. Doenças graves costumam ser
assim, ardilosas como cobras. Infiltram-se sorrateiras no organismo, produzem
alguns sintomas ligeiros, a presa considera que não se trata de nada
importante, uma tossezinha, um mal-estar que logo passa, e toca a vida como se
nada ocorresse de anormal. Até que os sintomas se agravam e a enfermidade
revela toda a sua maldade e ferocidade. É o bote da cobra, e nem sempre há
tempo para a cura, quando há cura. Mas não pretendo dissertar sobre a doença que
o atingiu. Apenas, para pôr termo ao assunto, direi que sua enfermidade foi
daquelas que embarcam no trem, sentam-se ao nosso lado e avisam que irão
conosco até o fim da viagem, e aí o cidadão tem de se conformar com a companhia
e arrumar um modo de conviver com ela. E, se possível, fazer alguma amizade.
A
notícia despertou-me boas lembranças. Quando ele se formou em Direito, pela
Universidade Federal do Paraná, ali pelos finais dos anos 1950, quis fazer
carreira em Santo Antônio da Platina. Foi para lá, alugou uma casa com vista
bonita para a praça Frei Cristóvão Capinzal, situada em frente (a praça era bem
mais bonita do que hoje), e convidou-me para ser, digamos, seu secretário.
Seria bom arranjo para mim, um adolescente até então sem trabalho, pois
cumpriria expediente só depois do almoço, após as aulas matinais no ginásio.
Assim comecei a frequentar o escritório do dr. Edeval, e sentava-me a uma
mesinha na saleta que dava para a porta de entrada, à espera de recepcionar os
possíveis e desejados clientes. Mas eram tempos difíceis para advogado
recém-formado iniciar carreira em Santo Antônio da Platina. Cidade pequena, com
vários advogados renomados com escritórios havia muito instalados, oferecia
reduzida chance para os novatos. Desse modo, nas tardes vazias de clientes, conversámos,
e fui depositário de algumas confidências suas, na certeza de que eu era um
túmulo para as revelações, virtude que me marcou na infância, deu-me fama junto
a meus irmãos e me fez, a justificar a confiança de que me orgulhava,
conservá-la pelo resto da vida
A
convivência não foi longa, infelizmente. Os clientes não apareciam, as contas
do mês venciam, as economias que Edeval possuía, se é que as tinha, se foram, e
ele fechou o escritório, entristecido e decepcionado. Não fora um bom começo,
era verdade, embora qualidades não lhe faltassem. Moço muito inteligente,
estudioso, de raciocínio rápido, bom argumentador e orador, carregava o
ferramental necessário para o sucesso na profissão. Resolveu mudar-se para
Ribeirão do Pinhal, e a decisão foi afortunada. Lá, fez carreira brilhante,
constituiu família e, certa altura, deu-se o luxo de parar com a advocacia para
tornar-se fazendeiro criador de gado.
Daqueles
dias de convívio no escritório em Santo Antônio da Platina, guardo a lembrança
de folhear, pela primeira vez, um tratado de medicina legal, indicado por
Edeval para me ajudar a passar as tardes ociosas. Esse detalhe, mais outras
circunstâncias, como a mania de ser advogado que havia em minha família,
acabaram me movendo para o estudo do Direito, e aí começaria outra história que
não interessa aqui. Importa dizer, agora, que guardo de meu primo Edeval
Gonçalves Azevedo lembrança boa, terna, daquelas que fazem bem a gente abrigar na
memória. Lá, ninguém morre.
Novembro de 2016.
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