O tempo
Cardosofilho
“Está vendo aquela moça ali?” Ele a
apontou com o dedo indicador da mão que segurava o copo de uísque. Ela
encontrava-se sentada à uma mesa próxima. Sim, o amigo a via. “Linda, não?” O
amigo concordou com a cabeça, era, de fato, bem bonita. “Pois olha”, retomou o
primeiro, “essa beleza física não é dela. Ela pensa que lhe pertence, vai viver
alguns anos iludida pela vaidade, mas o dono verdadeiro de sua formosura é o
tempo. Ela descobrirá lá na frente que é assim. Somos como esculturas de areia;
o tempo é o vento que sopra e vai nos mudando e retirando, aos poucos, a beleza,
a juventude. Desfazendo, entende?”. Fez
breve pausa, tomou mais um gole do uísque e continuou com sua filosofia brotada,
talvez, da bebida: “Nada nos pertence; o tempo é o dono de tudo e tudo ele leva
embora, de algum modo, algum dia. O presente é quase nada. Experimente: feche e
abra a mão. Viu? O presente escapou e você nem percebeu. O gesto já pertence ao
passado. Assim faz o vento do tempo, passa despercebido e vai nos alterando, nos
envelhecendo, tirando coisas, amores, vaidades e tudo mais. Por fim, nos mata”.
Novo silêncio enquanto girava o gelo no copo. “E se me perguntar qual a minha
fisionomia, responderei que não sei. Eu não percebo no dia a dia, mas as
fotografias tiradas ao longo dos anos revelam as mudanças. Nelson Rodrigues já
dizia que a verdadeira face é a do morto. O cronista sabia das coisas.
Verdadeira porque é a última, é a que fica. É quando o tempo a abandona. Ele sopra
apenas sobre os vivos. A face morta, o corpo morto, não interessam mais, já
cumpriram a missão, já se renderam para sempre ao senhor supremo”. Bebeu o
último gole do uísque já aguado, esperando o garçom. “É assim, amigo. Sobra-nos
mesmo é o passado, só as lembranças, se a mente não atraiçoa”. Emudeceu, e o
silêncio tinha algo de solene, como se emprestasse mais gravidade e peso ao que
acabara de dizer.
O que ouvia olhou em torno. Os garçons circulavam
servindo bebidas e canapés, cristais tiniam, de um canto do ambiente as notas
da canção “Manhattan” escapavam de um piano dedilhado como se fosse por Carmen
Cavallaro, e o ambiente banhava-se na claridade suave que descia de antigo e
pesado candelabro pendente no centro do salão. Sob a luz dourada, belas
mulheres e elegantes cavalheiros conversavam, riam e flertavam, animados pelo
clima festivo e pelos coquetéis. E apreciando as falas, risos e gestos, a
agitação levemente embriagante, o colorido e brilho dos vestidos longos, ele
refletiu melancolicamente que também aquele momento alegre e perfumado ia se
despedindo, se diluindo e se enfiando no passado. E pediu ao garçom que passava
mais uma dose de uísque.
Agosto de 2016.
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