quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Na Boca do Brilho

Na Boca do Brilho
Cardosofilho

Saio da Boca Maldita por volta das onze horas. É sábado, véspera das eleições. O tumulto das campanhas dos candidatos cessou quase por completo, o que é bom. O barulho de alto-falantes e jingles sem inspiração incomoda aos que, como eu, apreciam a tranquilidade. Afora a passagem de um grupo numeroso agitando bandeiras e gritando algum slogan, que observei de certa distância e não li e nem entendi coisa alguma, nada mais aconteceu. A frequência dos amigos reduziu-se, talvez pelo tempo nublado e frio ou por causa das eleições, sei lá. Por isso, minha retirada mais cedo. Com tempo antes do almoço, vou à Boca do Brilho, ao lado da Boca Maldita, na Praça Osório, engraxar os sapatos.
          Cheguei e encontrei as cadeiras vazias, dado incomum para uma manhã de sábado. Escolhi um dos engraxates, assentei-me e o serviço começou. Disse engraxate e já retifico: na Boca do Brilho são chamados de lustradores, inovação típica dos novos tempos, na esteira de se chamar empregado de colaborador, negro de afrodescendente e outras bobagens similares, e, por esse descaminho, deveríamos chamar, por exemplo, os polacos de “eslavodescendentes”. Quem aplica a graxa, o pano e a escova é Mauro, um brasileiro de 46 anos de vida, um tanto maltratado pelas durezas do dia a dia, e há pouco, antes de começar o trabalho, precisou aplicar curativo no polegar esquerdo, ferido por um corte. Abriu a conversa revelando que era o primeiro par de sapatos que engraxava naquele dia, o que, convenhamos, representava quase nada. Em outros tempos, disse-me, naquela altura, onze da manhã de sábado, já teria livrado a féria do dia e, se quisesse, poderia ir para casa. Mas, agora, os tempos são outros. Difíceis. Apontou as demais cadeiras vazias. Situação ruim para todos os engraxates, por falta de dinheiro no bolso da freguesia habitual. Uma engraxada custa dez reais (bota é mais). Não é pouco, considerando o serviço simples e rápido, mas não a ponto de, por si só, explicar a fuga dos fregueses. Mas eis a verdade: hoje, dez reais fazem falta ao bolso de muita gente e até os cuidados com sapatos sofrem com a economia forçada.
          Mauro conta-me um pouco de suas agruras. Come o que pode, não o que quer. Passa pelo mercado e leva para casa o estritamente necessário, às vezes nem isso, sem nenhum acréscimo que o desejo pede. Arrisquei dizer-lhe que a culpa de tudo isso pertencia aos governos petistas de Lula e Dilma, e ele, talvez um petista em outros tempos, concordou sem pestanejar. Hoje, continuou, aprendeu a não comprar fiado. Ou tem o dinheiro no bolso ou não leva a mercadoria. E supérfluos, nem pensar. Já passou pela vergonha de não poder pagar as contas no fim do mês por aquisições motivadas pelo consumismo e facilidade de crédito a juros obscenos.
          Segue com o serviço. Passa a última demão de graxa no sapato esquerdo, molha o pano, torce-o, passa graxa também no pano e o esfrega vigorosamente no couro, volta com a escova, de novo o pano. Dá por terminada a tarefa. Pago-lhe os dez reais, ele agradece um pouco comovido, pode ser o único dinheiro ganho na manhã nublada e fria. Logo a Boca Maldita se esvaziará, e aí o jeito será fechar a caixa e ir para casa, pensando no que poderá fazer com o mísero ganho. É mais um dos milhões de brasileiros vitimados pelo golpe, este sim verdadeiro, aplicado pelos nefandos governos petistas. Tempos duros, de sofrimento que não precisava existir e não pode jamais ser esquecido.


Outubro de 2016.    

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