Na Boca do Brilho
Cardosofilho
Saio da Boca Maldita por volta das
onze horas. É sábado, véspera das eleições. O tumulto das campanhas dos
candidatos cessou quase por completo, o que é bom. O barulho de alto-falantes e
jingles sem inspiração incomoda aos que, como eu, apreciam a tranquilidade. Afora
a passagem de um grupo numeroso agitando bandeiras e gritando algum slogan, que
observei de certa distância e não li e nem entendi coisa alguma, nada mais aconteceu.
A frequência dos amigos reduziu-se, talvez pelo tempo nublado e frio ou por
causa das eleições, sei lá. Por isso, minha retirada mais cedo. Com tempo antes
do almoço, vou à Boca do Brilho, ao lado da Boca Maldita, na Praça Osório,
engraxar os sapatos.
Cheguei
e encontrei as cadeiras vazias, dado incomum para uma manhã de sábado. Escolhi
um dos engraxates, assentei-me e o serviço começou. Disse engraxate e já
retifico: na Boca do Brilho são chamados de lustradores, inovação típica dos
novos tempos, na esteira de se chamar empregado de colaborador, negro de
afrodescendente e outras bobagens similares, e, por esse descaminho, deveríamos
chamar, por exemplo, os polacos de “eslavodescendentes”. Quem aplica a graxa, o
pano e a escova é Mauro, um brasileiro de 46 anos de vida, um tanto maltratado
pelas durezas do dia a dia, e há pouco, antes de começar o trabalho, precisou
aplicar curativo no polegar esquerdo, ferido por um corte. Abriu a conversa
revelando que era o primeiro par de sapatos que engraxava naquele dia, o que,
convenhamos, representava quase nada. Em outros tempos, disse-me, naquela
altura, onze da manhã de sábado, já teria livrado a féria do dia e, se
quisesse, poderia ir para casa. Mas, agora, os tempos são outros. Difíceis.
Apontou as demais cadeiras vazias. Situação ruim para todos os engraxates, por
falta de dinheiro no bolso da freguesia habitual. Uma engraxada custa dez reais
(bota é mais). Não é pouco, considerando o serviço simples e rápido, mas não a
ponto de, por si só, explicar a fuga dos fregueses. Mas eis a verdade: hoje,
dez reais fazem falta ao bolso de muita gente e até os cuidados com sapatos
sofrem com a economia forçada.
Mauro
conta-me um pouco de suas agruras. Come o que pode, não o que quer. Passa pelo
mercado e leva para casa o estritamente necessário, às vezes nem isso, sem
nenhum acréscimo que o desejo pede. Arrisquei dizer-lhe que a culpa de tudo
isso pertencia aos governos petistas de Lula e Dilma, e ele, talvez um petista
em outros tempos, concordou sem pestanejar. Hoje, continuou, aprendeu a não
comprar fiado. Ou tem o dinheiro no bolso ou não leva a mercadoria. E supérfluos,
nem pensar. Já passou pela vergonha de não poder pagar as contas no fim do mês por
aquisições motivadas pelo consumismo e facilidade de crédito a juros obscenos.
Segue
com o serviço. Passa a última demão de graxa no sapato esquerdo, molha o pano,
torce-o, passa graxa também no pano e o esfrega vigorosamente no couro, volta
com a escova, de novo o pano. Dá por terminada a tarefa. Pago-lhe os dez reais,
ele agradece um pouco comovido, pode ser o único dinheiro ganho na manhã
nublada e fria. Logo a Boca Maldita se esvaziará, e aí o jeito será fechar a
caixa e ir para casa, pensando no que poderá fazer com o mísero ganho. É mais
um dos milhões de brasileiros vitimados pelo golpe, este sim verdadeiro,
aplicado pelos nefandos governos petistas. Tempos duros, de sofrimento que não
precisava existir e não pode jamais ser esquecido.
Outubro de 2016.
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