Sonhos de banana
Cardoso Filho
Curitiba,
anos 1960, rua Marechal Floriano, última quadra antes da Praça Tiradentes, lado
esquerdo de quem sobe, logo após a esquina com a XV de Novembro. Havia ali uma
lanchonete, ao lado de uma agência bancária que talvez fosse do extinto Banco
da Lavoura de Minas Gerais (nessa agência, certa noite, um funcionário ainda
moço, descendente de japoneses, batido por algum desgosto invencível e
insuportável, meteu um tiro na cabeça, bem atrás da orelha direita. Removido o
corpo ao Instituto Médico Legal, fomos até lá em pequeno grupo de curiosos, sob
o comando de Noel Cândido da Moraes, na época escrivão de polícia, para
assistir à necropsia. Desisti do intento ao contemplar a pequena serra elétrica
circular que seria utilizada para abrir o crânio do morto. O estômago embrulhou-me.
Fui para fora e fiquei a ouvir, sob um vitrô, o réeeeemmmm da serra fazendo o
serviço. Nascia ali minha admiração pelos médicos legistas e seus auxiliares, e
me pergunto como nasce essa vocação profissional. A propósito, Nelson Rodrigues
contava, em uma de suas crônicas, a estória do moço que estudava medicina e, um
dia, sem nenhuma explicação, abandonou a faculdade e foi ser barbeiro de
necrotério, para desespero dos familiares. O resto não conto).
Logo
após a agência do banco mineiro havia a modesta lanchonete Arlequim, de propriedade
do seu Roda. Encontrávamos lá sonhos de banana, que apreciávamos comer
acompanhados de um copo de vitamina de morango, fruta que ela não continha, substituída
com sucesso visual por beterraba. Ao nos aproximarmos da entrada da lanchonete,
ainda na calçada, Alberto Andrade punha as mãos sobre a boca, a imitar um
microfone, e bradava: “Desce um sonho de banana!”. A cena divertia o
proprietário. Éramos amigos da casa, de amizade feita em torno dos sonhos com
vitamina de morango. A lembrança remota agitou-se do sono profundo em que
jazia, tocada pelo sonho de banana que comprei há pouco na panificadora da
esquina.
As
idas noturnas à lanchonete Arlequim, com o dinheirinho contado em nossos bolsos
de estudantes vindo do interior e empregos de salários magros, em busca de
lanche mais em conta, fizeram parte de época algo difícil. O dinheiro curto
limitava a quase nada os prazeres e divertimentos e contribuiu para que um
sonho de banana com vitamina, ou vitamina com duas fatias de pizza, ou um filé
de alcatra no Bar OK, ou um cachorro-quente, melhor ainda com linguiça no lugar
da salsicha, comprado no carrinho do Gaúcho na boca da madrugada, tenham se tornado
inesquecíveis. Coisas ligadas à vontade de comer, nem sempre bem atendida no
comum daqueles dias. Éramos, então, moços entrando nos vinte anos, tendo à
frente um horizonte sem fim em que cabiam todos os projetos e aspirações, e na
amplidão do futuro flutuavam as promessas que aliviavam as aperturas. As
esperanças nos empurravam para frente.
O
caminho percorrido a partir dali nem sempre guardou o rumo pretendido. A gente
põe e Deus dispõe, reza a sabedoria. Nem tudo se realizou e planos foram
mudados. Algumas decisões revelaram-se equivocadas ou pouco apropriadas, outras
foram boas, e muito aconteceu sem nos perguntar nada. Assim os dias seguiram, com
imprevisões, acertos e erros, apenas que estes nos acompanham vida afora, na
insistência da pergunta vã – e se tivesse sido diferente? Devaneios às vezes
doídos como espinhos na carne.
Vejam,
amigos, o que um singelo sonho de banana pode provocar.
Dezembro de 2014.
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