quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Somos assim

Somos assim
Cardoso Filho

          Fazia cinco anos que não ia a Santo Antônio da Platina. Nascido lá, tenho com a cidade um laço de afeto indestrutível. Assim somos. Não se esquece a terra de nascença, não importa a extensão do afastamento. Por aí posso avaliar a nostalgia doída e incurável dos que partem e deixam para sempre o chão natal. A terra, pais e mães, parentes, amigos etc.
          Soube de um desses imigrantes. Deixou a então Tchecoslováquia, em 1921, e acabou batendo no Brasil, e consta que nem seria o destino final por ele desejado. Pretendia era chegar aos Estados Unidos, para onde emigrara antes sua única irmã. Para trás, ficavam as terras devastadas pela Grande Guerra (1914-1918), assim chamada até vir a outra guerra mundial (1939-1945), e então se soube que a Grande Guerra fora a primeira. Mas as circunstâncias conspiraram para que ficasse no Brasil. Talvez tenha tido, bem no começo de sua vida por aqui, algum contato com a irmã, mas, se houve, este interrompeu-se por força das comunicações precárias da época. Restou-lhe contar ao longo dos anos, aos familiares e alguns amigos, sua saudade do que hoje é a República Tcheca, e da irmã e da mãe falecida (do pai, não sei se falava). E havia ocasiões em que, na intimidade familiar, cantarolava, com lágrimas querendo escorrer dos olhos azuis, canções de sua terra natal, que soavam intensamente belas e tristes a ouvidos que, sem entenderem o que elas diziam, sentiam a pungência das melodias. Nesses momentos, é certo que ele sonhava e se transportava para sua terra longínqua.
          Mas não se reencontra o passado, eis o caso. Cada visita a minha terra diz isto. Tornei-me um estrangeiro para ela. Caminho por suas ruas e sou um estranho a mais. Vez ou outra, encontro alguém conhecido, mas é raro. Mesmo os contemporâneos de meus anos em Santo Antônio da Platina devem sentir dificuldade em me reconhecer. Saí de lá em 1963, de quando em quando volto a ela, mas a verdade é que envelheci e a idade não deixa barato. Se encontro, entre velhos guardados, uma fotografia minha daqueles idos, nem eu me reconheço. A imagem da foto me parece falsa. Tampouco o espelho, que reflete diariamente minha imagem, concede-me clemência.
          Minha cidade cresceu muito. Estendeu-se em todas as direções e começa a subir os morros que a ladeiam. Até o morro do Bim, cartão postal, vai sendo acossado e chegará um dia em que alguém fincará em seu topo, como uma bandeira de alpinista a simbolizar a conquista, sua casa. E há os carros. E tem as motocicletas. As ruas inundaram-se deles e delas, e a dificuldade de transitar e estacionar os veículos chegou por lá, e o caos urbano em gestação incomoda. O antigo e modesto comércio praticamente sumiu e cedeu lugar a lojas modernas. Escorrem pelas calçadas novas gerações. Chácaras e pastos viraram loteamentos e vão se preenchendo de moradias. O que restou da cidade que deixei pode ser vista apenas em vestígios, aqui e ali. As mudanças podem ser boas. Dizem que é progresso, e a cidade mostra pujança. Com certeza oferece mais oportunidades de trabalho e ganho de dinheiro, e a necessidade de ir embora, como no passado, diminuiu. Ainda se vive bem por lá, apesar dos males que o crescimento trouxe, como o aumento da criminalidade, e dizem até que no morro do Sabão nem a polícia entra. Coisas de um Brasil atropelado pelo atraso e desgoverno. Mas o sol e o céu azul ainda estão lá. As estrelas, porém, diminuíram, porque a luminosidade da cidade apagou muitas delas. Mas, apesar de tão modificada, continua e será sempre a minha cidade. No entanto, a que deixei, a dos anos 1950 e 1960, essa desapareceu. Reencontro-a apenas no refúgio de minhas memórias.

Setembro de 2015.  


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