Somos assim
Cardoso Filho
Fazia cinco anos que não ia a Santo
Antônio da Platina. Nascido lá, tenho com a cidade um laço de afeto indestrutível.
Assim somos. Não se esquece a terra de nascença, não importa a extensão do afastamento.
Por aí posso avaliar a nostalgia doída e incurável dos que partem e deixam para
sempre o chão natal. A terra, pais e mães, parentes, amigos etc.
Soube de um desses imigrantes. Deixou
a então Tchecoslováquia, em 1921, e acabou batendo no Brasil, e consta que nem
seria o destino final por ele desejado. Pretendia era chegar aos Estados
Unidos, para onde emigrara antes sua única irmã. Para trás, ficavam as terras
devastadas pela Grande Guerra (1914-1918), assim chamada até vir a outra guerra
mundial (1939-1945), e então se soube que a Grande Guerra fora a primeira. Mas
as circunstâncias conspiraram para que ficasse no Brasil. Talvez tenha tido,
bem no começo de sua vida por aqui, algum contato com a irmã, mas, se houve, este
interrompeu-se por força das comunicações precárias da época. Restou-lhe contar
ao longo dos anos, aos familiares e alguns amigos, sua saudade do que hoje é a
República Tcheca, e da irmã e da mãe falecida (do pai, não sei se falava). E
havia ocasiões em que, na intimidade familiar, cantarolava, com lágrimas
querendo escorrer dos olhos azuis, canções de sua terra natal, que soavam
intensamente belas e tristes a ouvidos que, sem entenderem o que elas diziam,
sentiam a pungência das melodias. Nesses momentos, é certo que ele sonhava e se
transportava para sua terra longínqua.
Mas não se reencontra o passado, eis o
caso. Cada visita a minha terra diz isto. Tornei-me um estrangeiro para ela. Caminho
por suas ruas e sou um estranho a mais. Vez ou outra, encontro alguém
conhecido, mas é raro. Mesmo os contemporâneos de meus anos em Santo Antônio da
Platina devem sentir dificuldade em me reconhecer. Saí de lá em 1963, de quando
em quando volto a ela, mas a verdade é que envelheci e a idade não deixa
barato. Se encontro, entre velhos guardados, uma fotografia minha daqueles
idos, nem eu me reconheço. A imagem da foto me parece falsa. Tampouco o
espelho, que reflete diariamente minha imagem, concede-me clemência.
Minha cidade cresceu muito.
Estendeu-se em todas as direções e começa a subir os morros que a ladeiam. Até
o morro do Bim, cartão postal, vai sendo acossado e chegará um dia em que
alguém fincará em seu topo, como uma bandeira de alpinista a simbolizar a
conquista, sua casa. E há os carros. E tem as motocicletas. As ruas
inundaram-se deles e delas, e a dificuldade de transitar e estacionar os
veículos chegou por lá, e o caos urbano em gestação incomoda. O antigo e
modesto comércio praticamente sumiu e cedeu lugar a lojas modernas. Escorrem
pelas calçadas novas gerações. Chácaras e pastos viraram loteamentos e vão se
preenchendo de moradias. O que restou da cidade que deixei pode ser vista apenas
em vestígios, aqui e ali. As mudanças podem ser boas. Dizem que é progresso, e
a cidade mostra pujança. Com certeza oferece mais oportunidades de trabalho e
ganho de dinheiro, e a necessidade de ir embora, como no passado, diminuiu.
Ainda se vive bem por lá, apesar dos males que o crescimento trouxe, como o
aumento da criminalidade, e dizem até que no morro do Sabão nem a polícia
entra. Coisas de um Brasil atropelado pelo atraso e desgoverno. Mas o sol e o
céu azul ainda estão lá. As estrelas, porém, diminuíram, porque a luminosidade
da cidade apagou muitas delas. Mas, apesar de tão modificada, continua e será
sempre a minha cidade. No entanto, a que deixei, a dos anos 1950 e 1960, essa
desapareceu. Reencontro-a apenas no refúgio de minhas memórias.
Setembro de 2015.
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