Contavam bastante, em casa, sobre a
Fazenda São João. Não a conheci. Vim ao mundo quando a família a deixava. Mas
tomei em empréstimo as lembranças desse tempo ouvindo as histórias, e fui
criando em minha cabeça uma fazenda imaginária, sem, talvez, correspondência alguma
com a que existiu. São esses fragmentos de lembranças alheias que permanecem
comigo.
A fazenda ficava no setentrião
paranaense, próximo de Carlópolis, a uns cinco quilômetros da cidade. Meu pai
foi tocar a fazenda em negócio feito na confiança, no fio do bigode. O dono da
terra era o Frias e a propriedade encontrava-se semiabandonada. Combinaram a
sociedade, meu pai iria recuperá-la, depois formalizariam o acerto. A família mudou-se
para lá, meu pai arregaçou as mangas e aos poucos a fazenda retomou a produção
de café. Mas, certa altura, Frias não quis continuar, o combinado não foi
cumprido e a família retornou a Santo Antônio da Platina. Isso na altura de
1945. Depois, pouco se soube da fazenda ou de Frias, a não ser que ela retomou
a decadência, ele não durou muito e morreu de câncer, em São Paulo, e o filho
que foi tomar conta da propriedade morreu matado por lá.
De quanto ouvi, ficou-me que na
Fazenda São João havia os cavalos Pampa, bem manso, e Pelintra, meio arisco,
manhoso, algumas cabeças de gado, um açude para nadar e pescar e a plantação de
café predominando, como acontecia em todo o norte do estado, de um jeito que
paisagem de pés de café enfileirados a perder de vista chegava a ser monótona,
embora bonita. Também havia um garoto mestiço de índio e sabia-se lá mais do
quê, o Leontino, que jogava bola com meus irmãos e perguntava – “Warte, pra que
banda que eu taco?”, numa desorientação de dar gosto. Tinha também cobras venenosas
rastejando pelas capoeiras e varas de catetos andando pela mata, além de
aranhas e outros bichos. E, de noite, o céu estrelava como nunca mais e as
crianças contemplavam os astros pelas janelas.
Caso à parte eram os cachorros. Devia
haver uma porção deles, mas ficaram na memória a cadela Rolinha e o Tupi. A
Rolinha, não sei bem por quê. Devia ser mateira, esperta, dócil, e por isso
ganhou lugar na lembrança de meus irmãos. Mas notável foi mesmo o Tupi. Este,
conheci bem. Quando me dei conta de ser gente, lá estava ele, em casa. Era,
então, um cão velho, com os pêlos embranquecendo, de sabedoria danada. Se
tivesse, um dia, conseguido falar, eu não teria achado estranho. Teria sido
natural, para mim. Trazia muitas histórias do tempo da fazenda, casos de
esperteza e coragem que me encantavam. Entre outras virtudes, sabia caçar
galinha no quintal. Minha mãe escolhia uma, apontava para ele, ele partia para
o serviço e rapidamente aprisionava a penosa. Só prendia com as patas, ajudava
com a boca para sossegar a bichinha, sem machucar, e minha mãe vinha, a
apanhava e partia para os procedimentos que culminavam com a galinha refogando
na panela, e Tupi, concluída a tarefa com a competência costumeira, afastava-se
satisfeito e ia descansar do esforço, e a gente nem se admirava mais,
acostumada que estava. Fora isso, não incomodava as galinhas. Repartia com elas
o quintal em plena paz e sossego, a ponto de permitir que um franguinho, criado
dentro de casa desde pintinho, subisse em seu corpo repousado no chão, sem que
a folga do outro perturbasse sua sonolência.
Mais
haveria para contar sobre os feitos do Tupi e suas capacidades, aprendidas só
de observar e ouvir, na inteligência, sem ensinamento de humanos. Um cachorro
como não houve outro, em casa. Mas não convém arriscar e passar por contador de
lorotas.
Julho de 2015.
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