sexta-feira, 27 de novembro de 2020

REMEMORANDO – CORÔNICA CRÔNICA

REMEMORANDO – CORÔNICA CRÔNICA

24/5/20


“A bibliotheca, n’um concilio ecumênico de Lettras, ostenta, repleta e rica, o seo poder superior de chrysallida fecunda das civilisações”. Silveira Netto. Revista do Club Coritibano. Coritiba, 6 de janeiro de 1893. Anno VI – Número Especial – p.6.


Aspirador de pó num canto, fatigado de trabalho tanto, Cds, DVDs, Fitas de Vídeo e até uns Vinis foram redescobertos e descobertos das pátinas do esquecimento.

Mas gostoso, mesmo, foi revisitar as fotografias, aqueles álbuns no fundo da gaveta, outros na prateleira, na última e mais alta, fotos soltas naquela caixa marchetada com figuras de araucárias que antes ficava sobre a cômoda da vó.

Avidamente foi folheando aquele repositório de memórias familiares, paternais, maternais, amigas, aventureiras, cheio de saudades e histórias.

Há tempos não sentia necessidade dessas informações, apagadas pareciam, porém, ao mesmo tempo em que as imagens eram revistas, os nichos de memória foram  sendo encontrados.

Pegou, por primeiro, modo aleatório, o álbum da infância da mãe, falecida há 2 anos.

Viu, com admiração, semelhanças físicas, ah, pensou, a genética.

Prestou mais atenção, recordou da mãe contando de uma boneca que nunca largava e lá estava ela, não dava para ver direito, foto antiga, desgastada, pequena, mas tinha alguma coisa com cabeça, braços e pernas, só podia ser aquela boneca!

A casa dos avós maternos nas fotos, chegou a conhecer, mexia tanto na caixa marchetada que a avó se rendeu e a presenteou no aniversário de 12 anos: relicário que ninguém podia tocar.

Mamãe tão pequena, tão frágil, nem figurava viria a ser a mulher resoluta e obstinada na defesa da família.

Outro álbum e lá estava com primos num verão no interior de São Paulo – rostos felizes.

A filha de 7 anos vendo a atenção dada, aninhou-se no colo e pedia explicações, quem eram, aonde estavam, quantos anos tinham.

Vencido outro caderno de fotos, pegou o da formatura, 34 anos passados. Encontrava-se, até hoje, com alguns amigos. O grupo mais próximo seguia saudável, sem baixas, agora todos no whatsapp.

Tinha uns bilhetes no meio, mensagens de um Amigo-Secreto. Eram animados os jovens bacharelandos.

O menino de 12, arisco nos limites do apartamento, num acesso de ciúmes e curiosidade, sentou ao lado, e riu dos “tios” com cara de novos.

Unidos, prospectaram aquelas fotos, as coladas, as soltas, filho e filha questionando sobre pessoas e lugares.

Os arquivos do backup cerebral se foram abrindo e contou aos filhos as brincadeiras com os primos, como era sua escola, como era antes do smartphone, o que a mãe cozinhava, no que trabalhavam os avós.

Assim feitas as provocações, viu-se contando sobre sua vida na infância e na adolescência, no seu trabalho, como se apaixonou e casou, eles não perguntaram, mas ficou buscando as causas do divórcio. Não pareciam nítidas ante o dilúvio de lembranças. 

Claro, sabia, um amadureceu, o outro não, pronto!

Uma pontinha de saudade, de falta daquela companhia, insistia em não ir embora.

Lembrou dos namoros, de gente que não via fazia tempo, quais suas andanças?

Estavam os três juntinhos no quarto de televisão, a menina dormindo, o guri matraqueando com seu inquérito sobre o passado dos pais.

Ele perguntou se sabia fazer a torta de coco da avó, disse que sim, faria na terça-feira, depois da vídeoconferência do trabalho.

O menino perguntou, pela enésima vez, naqueles 45 dias de recolhimento doméstico, porque não iam para a escola, porque trabalhar em casa, queria ir no parquinho?

Explicou, paciente e novamente, de uma doença que veio da China e que estava deixando muita gente, no mundo todo, doente e que como não tinha remédio, para as pessoas não pegarem a gripona os médicos diziam para ficar em casa, não era bom muita gente junta, como na escola, no trabalho, no cinema, no campo de futebol.

Ele meneou a cabeça dando a entender que compreendera a explicação, depois ficou quieto, passados momento silenciosos, com olhar fixo, perguntou se quando acabasse a doença ainda ficariam juntos contando histórias, falando de comida, de brincadeiras, dos avós, dos tios.

Teve que pensar e não soube responder. Comoveu-se, olhos úmidos, imaginou se não negligenciara os filhos no corre-corre-4a revolução-industrial e cismou se não estava   substituindo a vida em família e a si, pelos professores, cursos de línguas, celulares, pelo conforto-consumismo-imposição-mídia? Já ouvira e lera a respeito, nunca crendo que a quantidade de tempo fosse melhor que um tempo curto, mas com qualidade. Ócio Criativo, do De Masi, suspirou.

Aaah, teve sentido a frase da menina, quando do aniversário do irmão, na semana anterior: no meu aniversário quero bolo, pastel, você e meu irmão, sem toda aquela gente da outra vez.

A fala fez perceber, devia mudar certos comportamentos, já estavam trancados havia 40 dias no apartamento de 3 quartos. Mal saíam para comprar alimentos e, mesmo assim, o menino ficava no carro e ia com a menina, máscaras no rosto, rapidamente comprar o que fosse necessário e voltavam para casa.

Tinham as lições da escola virtual, as reuniões de trabalho que monopolizavam o único computador, as horas de irritação, mas, especialmente, aqueles momentos de comunhão.

O peito apertou com um sentimento de culpa, alguma negligência com aquelas 2 criaturas tão dependentes, tão submissas ao modo familiar de ser, tirânico de alguma maneira, já que, claro, nunca foram consultadas para saber se queriam menos ou mais tempo com os pais.

Mas quais mudanças?

A resposta não era certa. Como tudo, reflexão era necessária, mas a incerteza do mundo pandêmico mostrava seu outro lado: a importância do mundo familiar, mais pensado, sem as imposições despóticas dos modelos sociais e econômicos.

O núcleo familiar estava em transformação, verdadeira crisálida em tempo de maturação, aguardando metamorfose de hábitos e usos, impulsionada por um microorganismo; o germe verdadeiro, entanto, só estava esperando o solo fértil da atenção para se manifestar e transmutar atitudes e percepções, metanoia diriam os filósofos.


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