sexta-feira, 20 de outubro de 2017

O Aguiar

O Aguiar
Cardosofilho

Era fascinante ouvi-lo contar suas histórias e aventuras, e se ficava a pensar que aquilo sim fora vida, não as nossas, comuns, acomodadas em rotinas descoloridas. A dele, bem diferente, cheia de emoções controlando o manche de um avião. Naquele tempo, já não voava. Estava um pouco velho e cansado, dizia, mas deixava transparecer que havia algo mais, algum mistério. Aliás, era um homem de enigmas, que gostava de narrar suas peripécias de aviador, mas evitava falar de si mesmo, de sua vida mais íntima, de amores passados, se tinha filhos, sobre família etc. Desconversava, mudava de assunto com uma risada seguida de alguma tirada de bom humor.
Encontrávamo-lo sempre no bar do Pernambuco. Ali era seu reduto para uma cerveja e boa conversa que se enfiava pela noite. Só bebia cerveja. No passado, experimentara as mais extravagantes bebidas em suas andanças por terras longínquas, mas agora ficava só na cerveja, que bebia devagar, com um prazer renovado a cada gole. Se havia alguém novo na roda de conversa, se entusiasmava e se deliciava em observar o brilho nos olhos do ouvinte recém-chegado no seleto grupo.
Havia muitas histórias. Contava, por exemplo, sobre o tempo em que voou para garimpeiros, recebendo o pagamento em ouro. Pousava em campos precários, de terra, em meio ao calor e poeira infernais, com alto risco, mas ganhava muito bem para fazê-lo. Seria impossível avaliar o quanto ganhara nesse tempo perigoso, de trato com gente boa e com bandidos, mas fora bastante, fora muito. Porém, como o dinheiro entrava fácil, saía do mesmo modo, em vida de muitos prazeres com mulheres, bebidas e joias. Gastou tudo, sorria, mas que diversão! Até que cansou, vendeu o aviãozinho já desgastado pelos muitos voos e buracos em que pousou. Dizia que fora sorte desfazer-se dele. Pouco tempo passou e soube que o avião caíra na selva e nunca foi encontrado. Não foi seu destino terminar daquele jeito, mas, se fosse, dizia, não teria do que se lamentar. Vida de aventureiro era assim, sujeita a todos os riscos, por isso emocionante. Vivia-se dia a dia, cada um podendo ser o último, e era preciso desfrutar com intensidade todos os momentos.
Chamávamo-lo de Aguiar. Era sobrenome. O nome era Júlio de Freitas Aguiar, mas ele preferia só o Aguiar, e explicava que sua vida fora guiar avião, ou seja, passara a vida “a guiar”, e se divertia com o trocadilho. Que vida, caro Aguiar!, e seu nome era para nós sinônimo de muito do que queríamos ter ou ter tido. Vida feita de viagens, lugares exóticos, perigos, emoções, mulheres a perder a conta, e a impressão que tínhamos era de que num dia qualquer ele partiria, atraído pelo desejo de viver com intensidade, coisa que a cidade pequena não podia lhe oferecer. A morte o fascinava, não pelo desejo de morrer, mas pelo desafio que ela lançava. Lembrava, por exemplo, o voo num bimotor sobre a selva amazônica, e um dos motores falhou. Parou de vez. Aguiar o embandeirou. Lá embaixo, o verde da selva impenetrável. Cair ali era sumir para sempre. Voava com ele três passageiros, que de pronto se apavoraram. Viam a morte se aproximar. Já viajava com eles, como quarto passageiro. O avião, pesado, com vento de proa, voava com dificuldade e o combustível era pouco. Um deles rezava, os outros dois se calaram, e Aguiar fechado, concentrado, de olho nos instrumentos de voo e navegação, pilotando com a perícia de tantos anos e contando com a sorte de o outro motor aguentar. Com muita dificuldade chegaram ao destino, um pista de terra aberta numa brecha desmatada, e os passageiros o abraçaram, comovidos. Ele os salvara.
Aguiar e seus voos e viagens! Ah, que encantamento era ouvi-lo, e a gente desenhava na cabeça os cenários e personagens que ele descrevia com muitos detalhes e cores. Viajámos com ele na imaginação, e então nosso mundo pequeno parecia um buraco, um nadinha de um mundo imenso. Lá fora, distante, moravam a aventura e emoção, e nós, ouvintes das histórias do Aguiar, seguíamos com ele em fantasias maravilhosas.
Um dia, ele, de fato, foi embora. Despediu-se dos amigos e disse que precisava reencontrar a antiga vida. Queria voar outra vez. Foi, para nós, um momento de não esquecer, de triste. Sem Aguiar contando e recontando suas histórias no bar do Pernambuco, cada vez com detalhes esquecidos na anterior, o que nos sobrava além da conversa miúda do dia a dia de uma pequena cidade? Por muito tempo ainda retiramos da lembrança as histórias que dele ouvíramos, e elas nos embalavam os sonhos e as passávamos para os que não tinham tido a ventura de conhecê-lo. Mais triste ainda foi quando descobrimos que Aguiar não fora tudo aquilo que contava. Nem sei se foi sequer um pouco. Ele criou um mundo imaginário, maravilhoso, e tão bem contado que, mesmo que de mentira, foi delicioso para nós. Por que o fazia, quem saberia dizer? Talvez porque a vida seja para alguns tão sem graça que é preciso inventá-la.

Setembro de 2017.


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