sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Helena

Helena
Cardosofilho
A perda repentina de Helena foi para Álvaro um golpe lancinante. Encontrou-a dormindo, assim lhe pareceu. Como a manhã já se adiantava, aproximou-se e chamou-a com suavidade. Não houve resposta. Sacudiu-a levemente. Ao tocá-la, a frieza do corpo lhe revelou a verdade terrível. A morte se insinuara durante o sono e a arrebatara. Álvaro gritou em desespero, clamando por ela uma, duas, três vezes. E, então, explodiu num choro convulsivo.
Viveu o funeral como se vagasse num pesadelo horrendo. Queria acordar e descobrir que tudo não passava de um sonho mau. Depois, teve de enfrentar a realidade e mergulhou em depressão. O golpe fora inaceitável e ele amaldiçoou a força misteriosa que o perpetrara. A maldita mão que a havia levado embora.
Apegou–se às lembranças felizes vividas com Helena. Mergulhou na solidão em que só ele e ela habitavam, e de tal modo que o comportamento se tornou doentio, e os amigos se preocuparam. Acabaria morrendo de um jeito ou outro. Não seria o primeiro. Era preciso resgatá-lo do poço, antes que fosse tarde, e a opinião unânime era que Álvaro tinha de mudar de morada, para se desprender do mórbido apego às recordações de sua vida com Helena.  Assim começou o insistente trabalho de convencê-lo a deixar a casa, primeiro passo na tentativa de recuperá-lo da prostração.
João Carlos, amigo mais próximo, se empenhou, mais que todos, na tarefa. Visitava-o com frequência e insistia: “Álvaro, você precisa deixar esta casa. Venda-a e compre um apartamento. Deixe para trás o passado. Não é esquecer, que a gente não esquece, mas acomodá-lo onde doa menos. Aqui, suas dores estão muito vivas e o maltratam demais”.
Álvaro fitou o amigo com a tristeza que o ensombrecia desde a morte de Helena. “Como deixar esta casa, João Carlos? Tudo que tive está aqui, cercado por estas paredes. Aqui, fui feliz com Helena, por trinta e dois anos. Aqui, cresceram meus três filhos. Se eu deixar a casa, viro um bicho sem dono, sem morada. Serei um estranho num apartamento qualquer, despido de mim, de minhas recordações, sem identidade”.
Deixaram o assunto. Forçar não ajudaria. João Carlos o retomaria em outra visita. O convencimento, se fosse possível, requeria a paciência da água batendo na pedra. Conversaram mais um tempo, beberam um cafezinho, depois João Carlos apanhou o chapéu, despediu-se, voltaria em breve.
Álvaro fechou a porta e foi sentar-se no sofá. Pensou em ligar o rádio, ou a televisão, mas desistiu. Queria permanecer quieto, sem nada a interferir nos pensamentos. A conversa reavivara lembranças. Sim, quase um ano depois de morta, Helena continuava presente. Quase podia senti-la pela casa. Olhou para a poltrona que ela preferia. Ah, por que não estava mais ali? Por que foi embora tão cedo, tão de repente? Cinquenta e cinco anos! Muito pouco. Era ainda uma mulher bonita, como fora desde mocinha. Pelos olhos da memória, a revia aos dezessete anos, quando a conheceu. Demorou a namorá-la. Cerca de um ano. Ela, muito jovem, não tinha pressa, queria escolher bem, e ele precisou de toda a sedução de que era capaz para conquistá-la. Namoro e noivado consumiram seis anos. Ela contava vinte e três, quando se casaram. Ele, trinta. Diferença boa, sete anos, já se sentiam com maturidade para enfrentar a vida a dois. O casamento deu certo. Foram felizes, e os desencontros, alguns motivados por seu ciúme, resolveram-se sem traumas. Sim, Álvaro fora ciumento desde o começo, de ciúme que não arrefeceu com o passar do tempo. Helena chamava a atenção, atraía os olhares dos outros homens, e ele se incomodava, cioso de sua pretensa posse. Será que ela devolvia algum olhar? Longe dele, flertaria com alguém?, e a possibilidade fazia lhe arder o sentimento. Helena, entretanto, ao que se sabia, jamais lhe deu motivo real para a preocupação. Apesar disso, Álvaro costumava comentar com os mais íntimos, como que brincando, mas, no fundo, a sério, que ser marido de mulher muito bonita era encargo pesado, requeria ciência.
João Carlos voltou dias depois. Conversaram amenidades, riram um pouco, Álvaro esquecia a dor por uns momentos e voltava a ser espirituoso como em outros tempos. Foram nessa toada até João Carlos voltar ao repisado assunto. Álvaro precisava deixar a casa, para seu próprio bem.  Fechar a porta do passado. A vida seguia, e ele não podia pôr-se à margem, agarrado de modo tão obsessivo a lembranças. Álvaro, no entanto, repetia os argumentos, não, não podia, seria como trair suas recordações mais valiosas, seria abandonar o que havia ainda de Helena na casa. João Carlos ouviu a argumentação costumeira. Preparara-se para isso.  Guardava o último cartucho, à espera de que Álvaro gastasse a munição. Então, ponderou: o apego tão forte de Álvaro à memória de Helena, procurando-a nos mínimos detalhes da casa, nas toalhas, nas louças e talheres, nos vestidos, nos sapatos, nos perfume e cremes sobre o toucador, recusando-se a deixar o passado, talvez a fizesse sofrer. Ele, de algum modo, poderia estar retendo-a por invisíveis laços, não permitindo que seguisse o caminho a ela destinado em outra dimensão. E, quem sabe, o espírito de Helena se atormentasse, vendo-o em sofrimento que a impedia de se libertar. Seria bom, seria justo impedi-la de seguir adiante? Fazê-la padecer?
Álvaro emudeceu. Baixou a cabeça. Pensou durante longos segundos. Rebateu, por fim. Aquilo constituía mera hipótese. Quem garantia que fosse daquele modo? Que Helena sofresse com seu apego tão forte a lembranças? João Carlos devolveu-lhe a indagação: e quem podia garantir que não fosse? A dúvida insolúvel estava posta. Álvaro arriscaria, dali em diante, fazer o espírito de Helena, mulher que ele amara com intensidade, sofrer com sua fixação? Valeria a pena apostar?  João Carlos levantou-se da poltrona, apanhou o chapéu e despediu-se. Estivesse certo, o assunto se encerrava ali. Não voltariam a ele, prometeu, e Álvaro que refletisse e resolvesse como achasse melhor.
Álvaro afligiu-se durante longo tempo, dias, talvez, diante da hipótese levantada pelo amigo, e chegou a detestá-lo por abalar sua dor. Mas, devagar, a insistência da água infiltrou-se em seu entendimento. Suas recordações podiam carregar o egoísmo de contemplar somente o seu sofrimento? E se Helena precisasse mesmo libertar-se para sempre dos vínculos terrenos?  Seria assim que acontecia? Quem o saberia dizer? Na dúvida, que não fosse ele a impedi-la, concluiu. Continuaria a lembrá-la com o amor e ternura que nada, nem o tempo, nem ninguém, diminuiriam, mas sem a obsessão que o atormentara, e em imaginação a viu alar-se como um passarinho rumo ao azul do infinito. E ocorreu-lhe pensar que a morte prematura de Helena concedera a ela a compensação de continuar eternamente bela.

Fevereiro de 2017.

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