Aniversário
Cardoso Filho
Setenta não são sete,
diria a viúva gorda e patusca, personagem criada por Nelson Rodrigues em suas
crônicas. A expressão me ocorre diante do fato de que colho neste maio mais uma
flor de outono. A colheita começou há setenta anos, num maio que festejava o
fim da II Grande Guerra, na Europa. Carrego, pois, um nutrido buquê de flores
outonais. Não sei por quê, dá-se a esse montante de aniversários um significado
meio cabalístico, como se fosse muito diferente de sessenta e nove ou setenta e
um. Na verdade, não representa nada além de um marco na veteranice cada vez
mais acentuada e indisfarçável.
Seria bom ter menos.
Vigor da mocidade nunca é demais, sem querer dizer que gostaria de voltar no
tempo. Na impossibilidade, vou em frente com o possível e a tranquilidade de
não ter razões para queixas mais sérias. Na armadilha do pensar, embarca-se no poderia
ter sido melhor, e sempre pode, bastava que tivesse feito assim ou assado, ou
não feito, ou dito, ou calado, ou ido, ou voltado. Bobagens. O passado é um
vasto campo para nossas cogitações tardias. Um morto exposto à necropsia de
nossas recordações.
Importante é a autoindulgência pelo
que se deixou de fazer ou não deu certo. Viver é isso mesmo, mistura de erros e
acertos, felicidades e infelicidades, encontros e despedidas, e ninguém
atravessa estas paragens sem levar embora sua cota de enganos. Que estes fiquem
por conta do imperfeito. Mas a conversa começa a parecer um inventário, tarefa
que cabe, quando cabe, depois de encerrada a conta, a outrem, caso a empreitada
tenha serventia ou interesse. Em geral, basta um santinho para a missa de sétimo
dia, contendo um resumo condescendente, como o “viveu com dignidade”, que soa
bem sem se enfiar em pormenores.
De modo que aqui estou, com as
preocupações normais e as limitações da idade, mas satisfeito com o saldo. E tranquilizado
pelos amigos que ultrapassaram a barreira dos setenta anos. Dizem que não dói,
salvo as dores de um joelho, ou da coluna, ou uma ou outra além, desgastes
naturais causados pela quilometragem avançada. Mas a boa manutenção ajuda,
desde que não se force muito a rotação e o desgaste não tenha sido excessivo.
Nesta altura, de desejos modestos e
poucas inquietações, de muito visto e nem tanto aprendido, uma curiosidade
tem-me atazanado e talvez o leitor possa me ajudar: gostaria muito de conhecer
o Contribuinte. Saber quem é, que rosto tem, onde mora etc. Ouço falar desse
sujeito a toda hora, no rádio, na televisão, os jornais o mencionam com
insistência, mas não oferecem detalhes e a informação vaga abre campo para mil
imaginações. Tudo indica ser um cidadão dos mais importantes do país. Rico,
muito rico, será com certeza, pois é um tal de despejar contas a pagar em cima
dele, de despesas altíssimas que ele não fez, que me pergunto de onde lhe vem
tanto dinheiro e chego a suspeitar que possa estar envolvido em grossas
maracutaias, dessas que os políticos promovem ou de que participam e envolvem
sempre grana pesada. Ou seja, o Contribuinte estará levando o seu. Mais admira
é que vai pagando as contas sem chiar, numa placidez bovina, em resignação
santa. Agora mesmo estão lhe espetando outra, descomunal, e dizem que vem mais.
Em minha eriçada e setentona curiosidade, me pergunto: será ele um refinado
malandro, um santo ou um completo e apático idiota?
Maio de 2015.
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