quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Noel Rosa versus Wilson Batista

Noel Rosa versus Wilson Batista
Cardosofilho

Nos anos 1930, houve uma polêmica musical protagonizada por Noel Rosa, na época já consagrando compositor de sambas, e o iniciante Wilson Batista, que viria a ser reconhecido como tal na década seguinte. Arrisco dizer que poucos conhecem essa história e haverá entre os mais moços quem até desconheça quem foram eles. É lamentável que seja assim. A memória popular esquece com facilidade, ajudada nesse olvidamento pelo desaparecimento das emissoras de rádio que transmitiam boa música. Também as de televisão prestam hoje esse desserviço. Mostram quase só lixo. Um exemplo: o programa dominical do Faustão. Exceções nesse panorama desolador são as poucas emissoras de rádio e TV de caráter educativo, infelizmente de pouca audiência.
O que foi essa polêmica musical? Tomei conhecimento da história na primeira metade dos anos 1950. Creio que por volta de 1955 (os historiadores do ramo afirmam que o disco foi lançado em 1956, mas suponho haver engano). O LP (capa estampada acima) de dez polegadas, o ouvi a ponto de decorar todos os sambas nele gravados. Havia em nossa casa, na rua Chile, uma sala de música, conjugada à de visitas. Foi a única sala doméstica reservada para esse fim que conheci ou de que ouvi falar. Talvez fosse moda nos anos 1950, não sei. Ia para lá, punha os discos na radiola e me deliciava com as canções de Francisco Alves, Dalva de Oliveira, Aracy de Almeida, Ângela Maria, Nora Ney etc. Ou Frank Sinatra, Perry Como, Bing Crosby, Beniamino Gigli, Tito Schipa e outros. Era nessa sala que minha irmã Dora gostava de dançar ao som de “A Dança dos Sabres” ou de músicas de filmes americanos, e rodopiava em coreografias inspiradas nas fitas a que assistia nos cinemas. A cena rememorada agora, sob a luzes do que o futuro lhe reservaria, permanece envolta em beleza, mas ganha tons dramáticos e cruéis. Mas sobre essas coisas já escrevi em outro momento.
A polêmica começou em 1933, quando Wilson Batista compôs “Lenço no Pescoço” (Meu chapéu de lado/ Tamanco arrastando/ Lenço no pescoço/ Navalha no bolso...), em que louvava ser malandro e vadio. A resposta de Noel teve, segundo contam, motivos amorosos. É que Wilson Batista teria roubado uma namorada de Noel, uma dama da Lapa boêmia, e o samba “Rapaz Folgado” foi a vingança (Deixa de arrastar o teu tamanco/ Pois tamanco nunca foi sandália/ Tira do pescoço o lenço branco/ Compra sapato e gravata/ Joga fora essa navalha/ Que te atrapalha...).
Wilson Batista reagiu com “Mocinho da Vila”, em 1934 (Você, que é mocinho da Vila/ Fala muito em violão/ Barracão e outros fricotes mais/ Se não quiser perder o nome/ Cuide do seu microfone/ E deixe quem é malandro em paz...). O microfone apareceu no samba em alusão ao fato de que, na época, Noel Rosa já frequentava as rádios apresentando suas composições musicais. Consta que Noel ignorou a resposta e fez outros sambas. Um deles, em parceria com Vadico, não tinha relação com a polêmica e desde logo tornou-se um clássico: “Feitiço da Vila” (Quem nasce lá na Vila/ Nem sequer vacila/ Ao abraçar o samba/ Que faz dançar os galhos/ Do arvoredo/ E faz a Lua nascer mais cedo...). O samba era em homenagem à Vila Isabel, bairro carioca do poeta. Wilson Batista, ainda sem expressão na música popular brasileira, aproveitou para provocar Noel e, assim, promover-se. Lascou-lhe “Conversa Fiada”, composição de 1935 (É conversa fiada/ Dizerem que o samba/ Na Vila tem feitiço...). Noel rebateu com “Palpite Infeliz”, também de 1935 (Quem é você que não sabe o que diz/ Meu Deus do céu, que palpite infeliz...).
Parecia terminada a polêmica, mas Wilson Batista apelou com o samba “Frankenstein da Vila”, em que aludia à feiura de Noel Rosa por um defeito no queixo que lhe ficara do nascimento com o auxílio de fórceps (Boa impressão nunca se tem/ Quando se encontra um certo alguém/ Que até parece o "Frankenstein"...). Noel não respondeu. Segundo alguns, ele até achou graça, mas houve quem afirmasse que não foi bem assim. Ter-lhe-ia doído fundo, a ponto de chorar na mesa de um café, na presença de um amigo.
Wilson Batista viria com mais um samba: “Terra de Cego”, de 1936 (Deixa essa mania de bamba/ Todos sabem qual é/ O teu diploma no samba/ És o abafa da Vila, eu bem sei/ Mas na terra de cego/ Quem tem um olho é rei...).
No disco, aparece ainda o belo samba “João Ninguém”, de Noel (João Ninguém/ Que não é velho nem moço/ Come bastante no almoço? Pra se esquecer do jantar...), mas que não fez parte da polêmica musical.
Terminaram amigos. Noel faleceria de tuberculose, em 04.05.1937, e Wilson Batista viveu até 07.07.1968, confessando-se admirador do poeta da Vila.
O LP virou relíquia de colecionadores. Ainda bem que se pode ouvi-lo na internet, por meio do YouTube. Vale a pena. Contém antológicos sambas. A mim, além do prazer musical, me transporta para a sala em que eu, menino de calças curtas, aprendia a apreciar a boa música popular brasileira.

Agosto de 2017.

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