O sótão
Cardoso Filho
Tenho medo daquele sótão.
Começou
no final de uma tarde antiga. Era verão, e fui ao sótão para apanhar um pouco
de brisa que me refrescasse. Havia lá dois quartos, um com janela dando para a
rua e o outro, com janela para os fundos da casa, e suas portas se abriam uma
de frente para a outra; entre as portas, estendia-se longa e estreita escada de
madeira que mergulhava num buraco escuro se a porta que a ela dava acesso, no
piso térreo, estivesse fechada, e então se precisava acender a pequena lâmpada
que pendia do teto de forro paulista. Íngreme de tal modo que os idosos da casa
jamais se aventuravam a subi-la. Abertas janelas e portas, uma corrente de ar
costumava percorrer os quartos e ajudava a mitigar o calor do setentrião.
Deitei-me numa das camas
do quarto da frente e relaxei esperando que a brisa soprasse, mas o ar parado,
mormacento, oprimia a tarde e o cômodo. Fui até a janela e espiei as árvores próximas.
Natureza imóvel, nenhuma folha se agitava, e o céu gordo de nuvens escuras se
fechando por cima. Não demoraria a chuva trazendo alívio. Foi nesse instante
que voltei os olhos para dentro do quarto e vi. Uma folha de papel, pousada
sobre a mesinha de cabeceira, estremeceu. Ora, não havia vento para isso. Ocorreu-me
que se tratasse de ilusão dos olhos. Não poderia ter acontecido. Tornei a mirar
a rua, as árvores e o céu; depois, volvi a vista para o papel sobre a mesinha.
Ele mexeu-se levemente, como se tocado por breve aragem. Nessa altura, também
estremeci. O acontecido não tinha explicação razoável. Repeti a experiência,
mas então o papel permaneceu imóvel. O fato era demais intrigante e me
angustiou. Teria acontecido ou fora imaginação? Se real, estaria diante do insólito,
do inexplicável, e não desejava isso de nenhum modo, Deus me livrasse, queria
era permanecer fincado firme no mundo das coisas tangíveis e entendíveis. Se
não fosse, seria pior – estaria vendo demais, alucinando, criando coisas na
mente, variando da cabeça.
Deixei apressado o
quarto, desci a escada e fui para fora da casa, em busca de arejar o cérebro.
Não comentei o caso com ninguém, e nem saberia o que contar. Tentava antes
entender o sucedido, como se isso fosse possível, e nessa perturbação de
espírito consumi o restinho da tarde e ingressei na noite. Chegada a hora de me
deitar, subi para o sótão preso pelo medo, mas sem escolha. Tinha de enfrentar a
situação. Naquele tempo, só eu ocupava o sótão, de modo que constituía ali uma presença
solitária. Até então, a solidão fora boa, pois me permitia fumar escondido, à
beira de uma das janelas, sem a preocupação de ser surpreendido. E nas noites
estreladas, e nas noites de luar, a janela que se abria para a rua
funcionava-me como privilegiado e exclusivo observatório do espaço sem fim, e,
ali, debruçado, eu vagava em sonhos. Mas, agora, um mistério profundo como a
vastidão sideral me atormentava, e estar sozinho me enchia de temor. Era a
solidão envolta pelas sombras do sem explicação.
As noites passaram a ser assustadoras,
feitas da expectativa que eu não sabia do quê. Desejava com toda a força do
pensamento que nada acontecesse além das coisas compreensíveis, como o vento
real que podia agitar papéis e cortinas, ou um risco luminoso no céu noturno acompanhado
pela visão através do recorte da janela. Agravava que a casa era antiga, e as
casas velhas têm memórias retidas em suas alvenarias e madeiramentos. Seriam
essas memórias que estariam a se agitar? E por que o fariam? O que teria eu a
ver com tal possibilidade, insensata à razão fria? E quando apagava a luz, a
escuridão aguçava meus sentidos e eu me punha na busca insana de sentir ou
ouvir algo, ao mesmo tempo em que rogava que nada sentisse ou ouvisse. Era
atormentador. E se algum estalido quebrava o silêncio, e sempre havia, vindo
provavelmente da madeira de algum móvel ou das paredes, meu corpo estremecia e
se arrepiava. No seguir das noites, passei a pressentir algo no quarto. Não
via, não ouvia, não sentia cheiro, mas alguma coisa indefinível, inexplicável,
pairava no ar. Socorria-me, então, a ideia de que podia ser apenas o medo
produzindo-me alucinação. Mas podia que não fosse, era o pensamento seguinte, e
entre um e outro oscilava minha mente atribulada.
A folha de papel
estremecendo sobre a mesinha de cabeceira, sem nenhuma causa aparente,
permaneceu em mim pelos anos afora, a desafiar o raciocínio. Muito depois, a
casa foi demolida e levou consigo o enigma que me assombrou. Mas o velho sótão
desaparecido continua vivo em minha memória e o medo entranhado de voltar a ele
não morre.
Janeiro de 2015.
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