sexta-feira, 1 de setembro de 2017

O prisioneiro

O prisioneiro
Cardosofilho

Dois soldados o trouxeram à sala de interrogatório. Um moço alto, magro, vestido numa farda suja, insígnia de segundo-tenente, com o abatimento expresso na face e no corpo. Sentaram-no numa cadeira. Um capitão loiro, estatura mediana, olhos azuis, aproximou com o semblante cerrado. “Nome e unidade militar”, pediu secamente. O prisioneiro declinou nome e número, nada mais. Nenhuma informação ao inimigo, era o dever.
Iniciou-se interrogatório. O capitão queria informações sobre unidade militar, comando, localização, movimentos previstos, armas etc. O prisioneiro respondeu com seu nome e número. O capitão aproximou-se: “Durão, hein? Todos são assim. No começo. Depois falam. Sabemos como fazer isso. Mas podemos ser amigos, se cooperar. Posso lhe facilitar a vida de prisioneiro de guerra. Mas também torná-la muito difícil, compreende? Depende de você. Garanto-lhe que tentar resistir será a pior escolha. No começo, há o desejo de sentir-se um bravo, valente, um patriota candidato a herói. Mas só no princípio. Nós cuidaremos de que mude de opinião. Antes de continuarmos, quero que reflita sobre a realidade da guerra e sobre o que você representa nesse cenário imenso. Voltaremos a falar amanhã. E tenha em mente que você pode facilitar o trabalho para nós dois. Especialmente para você”. Virou-se para a escolta e ordenou que o levassem. O prisioneiro voltou para a cela fria. Corria setembro, o tempo mais o deprimia, com muita chuva e temperatura baixa, prenunciando o inverno. Os dias seriam longos e difíceis, ele sabia, só não sabia quanto. Precisaria de muita força interior para suportá-los e quis acreditar ser capaz de fazê-lo.
No outro dia, retornou ao interrogatório. Sentaram-no na mesma cadeira. O capitão parecia de bom ânimo, apesar do dia frio e cinzento. A sala estava agradavelmente aquecida e o capitão tomava um chá fumegante. Pousou a xícara na mesa e aproximou-se: “E então, tenente, refletiu sobre o que é a guerra?”. O tenente respondeu que sim. “Pois, então, me diga qual a sua unidade?”. O interrogado repetiu seu nome e número. O capitão sorriu, como se esperasse aquela resposta. “Vamos lá, tenente. Vejo que pensou mal e está ainda iludido. Vou tentar lhe esclarecer. Entenda que ninguém mais se importa com você. É apenas um número, uma das muitas baixas de seu exército. Faz parte, agora, apenas das estatísticas. Quem estará pensando em você? O cabo? O sargento de seu pelotão? O capitão da companhia? Não, não. Talvez já tenham morrido ou estejam aprisionados. Você é carta fora do baralho. Está só, como nunca esteve. Não é mais soldado, é apenas um prisioneiro, compreende? A aventura acabou. Deixe-me, agora, dizer-lhe o que é a guerra. É um jogo enorme, sujo e complexo. Cada soldado é simplesmente uma minúscula peça posta num imenso tabuleiro. Nada mais que isso. Se morre, vira um número. Um dia, alguém contabilizará que na campanha tal o exército X perdeu tantos milhares de soldados. Nenhum nome, porque não importa. Mortos rostos, sem história ou glória. Seu nome só aparecerá quando enviarem uma carta à sua família comunicando que desapareceu ou morreu. Ou numa cruz perdida em algum campo. Repito, um jogo sujo, sangrento, jogado por políticos instalados comodamente a centenas e centenas de quilômetros de distância do fogo e do inferno. Eles decidem quando e como jogar, e os soldados apenas cumprem as ordens em missões muitas vezes suicidas. Quem se importa? É o jogo. Perco tantas centenas de homens, mas ganho uma colina, ou atravesso um rio, ou finco uma cabeça-de-ponte em terreno inimigo. Interessa o objetivo, a estratégia, a vitória. O resto não conta. A verdade, tenente, é que, como soldados, somos nada. Matamos ou morremos anonimamente. Acredita que tem alguma importância nessa loucura?”. Voltou-se para a xícara de chá, tomou um gole, acendeu um cigarro, deu longa tragada, lançou a fumaça para fora, e o prisioneiro ansiou por fumar também. Como lhe fazia falta o tabaco!
Pôs o cigarro no cinzeiro, olhou fixamente para o prisioneiro. “Assim são as guerras, tenente. Desde o começo da História”. O prisioneiro permaneceu em silêncio. O discurso o incomodava. Já pensara sobre a realidade da guerra e se perguntara que sentido fazia todo aquele horror e mortandade, o desfile de inválidos e o sofrimento nas trincheiras. E sentia saudade atroz das campinas de sua infância, dos dias felizes e ensolarados repletos de sonhos do jovem que já morrera dentro de si, do mundo que deixara para trás e sabia que, mesmo que sobrevivesse à guerra, não mais o reencontraria. O capitão retomou: “É esta a crua e dura realidade. Então, sua resistência não servirá para nada, exceto para maior sofrimento seu. Você, repito, não conta mais, se é que já contou um dia. É apenas um peão fora do tabuleiro. Somos, todos os soldados, carne a ser moída na máquina infernal dos grandes conflitos humanos. O jogo prosseguirá sempre, depois deste outros virão, e assim será até o fim do mundo, se acontecer. Mas, agora, você já não faz parte do jogo. Como se tivesse morrido. Tem, no entanto, informações que me interessam. Pode me contá-las e eu retribuirei a colaboração. Receberá bom tratamento”. O cigarro se extinguira no cinzeiro. Acendeu outro, e o aroma atingiu o prisioneiro e o fez mais sedento ainda por fumar: Você falará, é certo. Todos terminam falando. De um modo ou outro. Os inteligentes escolhem logo. Os que se consideram valentes resistem no começo, mas acabam por revelar o que sabem. Antes, porém, sujam as calças. Acredite, soldado, ninguém, e repito, ninguém suporta nossos interrogatórios”.
Na solidão da cela, o tenente deitou-se no catre em profunda prostração. Miseravelmente só, entregue ao terrível dilema que lhe fora imposto. Debatia-se entre o dever militar de manter-se calado e a realidade de prisioneiro. Poderia suportar quanto? Suplício psicológico ou tortura física? Até onde o ser humano poderia aguentar? E não aguentar significaria o quê? Covardia? Traição? Ele sabia dos seus limites. A dor física, a partir de certo ponto, lhe seria insuportável. Mas não se considerava covarde. Ao contrário, poderia combater com bravura, matar o inimigo ou correr o risco de morrer ou ser ferido, mas a morte ou ferimento em combate aconteceria num segundo, sem tempo de sentir ou pensar. Um tiro surpreendente, vindo de um fuzil qualquer ou de uma rajada de metralha, e pronto! Mas agora...
No terceiro dia de interrogatório o capitão lhe ofereceu um cigarro. O prisioneiro o apanhou com avidez, desesperado pelo desejo de fumar. Mas o capitão não o acendeu. Deixou o cigarro intato entre os dedos trêmulos do prisioneiro. Serviram o chá, e o capitão apanhou a xícara e mordeu um biscoito. O prisioneiro ansiou por um pedaço. A fome o martirizava. Mas, ao menos, o cigarro... O capitão, no entanto, media os gestos em calculada crueldade. “Vamos recomeçar, soldado”, e deixou que o silêncio tomasse conta do ambiente, só afetado pelo bater dos saltos de suas botas longas no assoalho de madeira, ao caminhar pela sala com as duas mãos juntadas atrás do corpo. Por fim:  “Hoje é sua última chance. A guerra acabou para você. Num belo dia, depois que tudo terminar, poderá voltar para casa, caso colabore conosco, e ninguém lhe perguntará coisa alguma e não precisará dizer nada. Ninguém fala, ninguém confessa que cedeu e ninguém tem o direito de lhe exigir isso. Seu sofrimento é só seu e único e será absolutamente inútil e, acredite, insuportável. Lembre-se: até os que se dizem corajosos cedem, depois de se borrarem de modo abjeto e aviltante. Prepare-se, então. Amanhã você falará ou o entregarei aos nossos especialistas. Verdadeiros demônios na arte de interrogar. Nenhum ser vivo resiste, tenha certeza. Não pague para ver. Acendeu-lhe o cigarro e saiu da sala.
Naquela noite longa e insone, o prisioneiro debateu-se em intensa aflição. Desejou pôr fim à vida, mas na cela nada havia na que lhe permitisse o ato extremo. Morrer seria a solução. Morreria como soldado, em resistência ao inimigo e poria fim ao sofrimento moral que o sufocava. Sabia que não suportaria a dor física. Arrancar-lhe-iam os dentes com um alicate? Ou as unhas? Ou fincariam agulhas sob estas? Ou haveria algo ainda pior, alguma tortura que só o demônio seria capaz de engendrar? Suava frio e o pavor o desesperava. Quando percebeu a primeira claridade do novo dia, chorou espremido, baixinho, como um menino perdido, em desalento e solidão sem remédio. Chamou por sua mãe e pediu por um milagre que de algum modo o retirasse do pesadelo. Quando dois soldados vieram buscá-lo, caminhou com lágrimas ainda descendo pelo rosto magro.

Agosto de 2017.
  

 

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