quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Assombração

Assombração
Cardosofilho

          Ficou conhecida como a “árvore do enforcado”. Uma enorme paineira, antiga, frondosa, crescida à beira de uma passagem de terra que ligava duas ruas ermas, suburbanas. O caminho teria não mais que cem metros, e durante o dia a utilizavam para encurtar a caminhada a pé. Carro não. E, de noite, ninguém arriscava. Aconteceu que, nela, havia muito anos, enforcara-se um moço em desespero de amor. Ele amava uma formosa mocinha, ela também o queria, mas a família da donzela se opôs ferozmente. Não era rapaz para aquela flor, criada com tanto zelo e carinho. Ela merecia algo muito melhor, sentenciaram, e ela foi incapaz de rebelar-se. Amava, mas renunciava pela família. Contavam que ele propôs que fugissem. Ela recusou a loucura. Seriam capaz de matá-la por tal atitude. Então, quis ele que se matassem. Tomariam formicida e morreriam abraçados, e assim caminhariam para a eternidade, onde, quem sabe, aquele amor fosse permitido. Seriam felizes assim, mas ela também não aceitou. Deus que a livrasse de tal pecado! O moço, em desespero pela perda de seu amor, comprou um pedaço de corda e sumiu de casa. Foi encontrado no outro dia, dependurado num galho da paineira.
          A tragédia ganhou a cidade, mil comentários surgiram, contavam isso e aquilo, a imaginação febril tecia narrativas delirantes, ela teria concordado com o suicídio por amor, mas, na hora final, desistira e não fora encontrar o namorado, e que o suicídio por enforcamento, pela aterradora dramaticidade do ato, teria sido a forma escolhida para puni-la pela traição. E que ele lançara uma maldição à moça, à sua família e à cidade toda, e ninguém sabia direito que maldição teria sido e o mistério adensou-se mais. Foi um passo para a paineira transformar-se na árvore do enforcado e se tornar mal-assombrada na crença geral. Diziam que passar por ali, à noite, era perigoso, podiam aparecer coisas, como a alma do moço suicida, que não descansava e penava no Além. E o caminho passou a ser evitado e a história transmitiu-se de geração para geração e virou lenda. Naquela altura, a mocinha formosa pivô do caso também já se fora, já mal lembravam seu nome, seria Jacira, outros diziam Jandira, ou Janira, e o que ficou mesmo de certo foi a árvore assombrada.
          Um dia, em roda de amigos, Vandão, Aldrovando no registro civil, bravateou que teria coragem de passar pelo caminho mal-assombrado, à noite. Vandão era sujeito corpulento, forte e brigão quando bebia. Sóbrio, era uma seda, brincalhão, bom companheiro, mas bastava exagerar no álcool, ou se o provocassem, que ele desandava. Evitavam convidá-lo para festas, porque era capaz de provocar encrenca por qualquer bobagem. Certa vez, acabara com um baile porque a mocinha de quem gostava recusou-se a dançar com ele, naquela altura um tanto embriagado. Vexado, avisou: “Pois então a mocinha pode pegar as tralhas e picar a mula, porque neste baile não dança mais”. Um familiar, sentado à mesa da mocinha, levantou-se para tomar satisfaçã, levou um sopapo e se esparramou sobre mesas e cadeiras. Foi um alvoroço, com muito custo contiveram Vandão, e precisou de uns dez, e o baile terminou ali mesmo.
Combinaram com ele o dia da proeza. Seria numa sexta-feira, às onze e meia da noite, dia e hora lúgubres e apropriados para o desafio. Um grupo iria com ele até o início do caminho e outro o aguardaria na saída. Vandão não tinha como recusar, embora, no íntimo, quem sabe amargasse algum arrependimento, mas, tido e havido como valente, e o era, não podia desistir do que dissera ser capaz de fazer. Ignorava, naturalmente, que os amigos lhe preparavam uma galhofa. Um terceiro grupo se postaria bem próximo da paineira, ocultado no mato, munido de latas vazias de cinco litros de querosene Jacaré e pedaços de pau, lanternas e um lençol branco.
          No dia combinado, seguiram eles, Vandão à frente um tanto calado, meio alheio à conversa geral. A noite era escuridão plena, sem lua, e no beco não havia iluminação. Na entrada, despediram-se dele, desejam-lhe boa sorte, que nada de mal lhe acontecesse, deram-lhe tapinhas nas costas para encorajá-lo, e ele partiu num passo algo hesitante. Embrenhou-se na escuridão e logo sumiu. Aproximava-se da paineira do enforcado. De repente, viu luzes piscando no matagal que margeava o caminho. Piscavam em vários pontos, pareciam diabos saltitantes. Um negócio meio louco, sem explicação. Ouviu um uivo medonho. Apressou o passo, já tomado de pânico. Súbito, explodiu um infernal barulho (eram as latas de querosene sendo furiosamente batidas com pedaços de pau). Em seguida, um vulto branco cruzou o caminho. Então Vandão disparou de vez, arrepiado até a medula, desesperado para atingir o fim da passagem maldita. Chegou ofegante, muito pálido, sem querer conversar, e os amigos que o aguardavam logo sentiram o cheiro do medo que ele exalava e, sob a luz mortiça de um poste, viram que suas calças estavam sujas. Contam que os autores da zombaria, receosos de revelar-lhe a armação, silenciaram, e o tenebroso episódio incorporou-se à lenda.


Agosto de 2016.

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